quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Deslocamento emocional em geografia distante

Hugo Viana


A mitologia grega oferece possibilidades concretas de criação ainda hoje, especialmente pela capacidade de sugerir alegorias para personagens e enredos. O livro "Ithaca Road", do gaúcho Paulo Scott, narra a crise pessoal de Narelle, uma neozelandesa acossada por amores desajeitados e negócios de família que ocupam a beira de um precipício. "Narelle é uma Penélope cercadas de ulisses", sugere Paulo Scott. "Só que diferente da Penélope da mitologia, ela não esperará por ninguém - pelo contrário, irá atrás de um dos seus ulisses", ressalta o autor. 

O livro integra a série Amores Expressos, projeto da Companhia das Letras em que autores brasileiros foram enviados para diferentes capitais e, dessa experiência, deveriam produzir uma história de amor. Paulo viajou para Sydney, encontro que gerou um enredo que ao mesmo tempo em que apresenta o exotismo de uma visão estrangeira, a descrição de uma certa Austrália mítica, trata de temas essencialmente universais, amor, ganância, esperança e desespero. 

A história se concentra numa certa semana caótica da vida de Narelle; seu namorado, um austríaco chamado Jörg, a pediu em casamento, mas deixou a resposta suspensa, pois viajou para o Brasil em busca de uma reportagem investigativa que mexe no bolso de pessoas de poder; seu irmão, Bernard, está aparentemente prestes a decretar falência no bar que administra num bairro pop de Sydney, então chamou a irmã para gerenciar o local enquanto viaja em busca de financiamento. 

Narelle é vítima de psoríase, doença que deixa marcas na pele. Sua condição física parece alegoria para um conturbado estado emocional: o estresse acumulado a torna ainda mais frágil, com a epiderme coberta por inflamações. Num encontro fortuito, ela conhece Anna, mulher que também sofre com uma condição especial - conhecimento mútuo que parece salvar ambas do inferno da incompreensão. 

Aos poucos, numa prosa que parece crescer através de diálogos afiados e enredo cuja simplicidade sugere leituras sobre política de afetos, o autor revela desesperos contidos, emoções obstruídas por mecanismos de defesa nem sempre devidamente calibrados. Um romance em que o detalhe, a descrição minuciosa da cena, parece convocar o leitor a investigar o panorama geral de uma história de encenações. 

"Abordo pessoas 
em situações-limite"

Gostaria primeiro de saber sobre a série Amores Expressos. Do ponto de vista de criação, há algo diferente em escrever sob encomenda? 
Escrever sempre é difícil. Fiquei um tempo me trabalhando para esquecer que era uma encomenda, esquecer que havia expectativas concretas de quem apostou na possibilidade de eu contar uma boa história. De modo geral, essa é a mesma realidade entre editora e o escritor que recebe um adiantamento para escrever um livro. Pressão sempre há. No caso dos Amores Expressos, a única exigência relevante era a de que a história relacionasse a temática do amor, do envolvimento entre duas pessoas. Há muito espaço para criar.

Como foi o processo de escrita, as etapas de criação? 
Sobre o processo de criação, o que posso dizer é que é sempre caótico e varia de livro para livro. Cada história tem sua dinâmica para acontecer; tento não burocratizar ou disciplinar demais a tarefa. O Processo muda de um mês para outro, de uma semana para outra, porque eu mudo. Acho um tanto sem sentido expressar um modo milagroso, excepcional, mágico de fazer um livro acontecer. Como dedico quase todo meu tempo a escrever, sinto que já passei há algum tempo dessa necessidade de romantizar o processo criativo.

Assim como "Habitante Irreal", "Ithaca Road" trata da dificuldade de manter relações, encontros fortuitos, a condição política da existência. Diria que afetos e política são interesses de seu projeto literário?
É curioso. Dia desses alguém me escreveu dizendo que "Voláteis" (2005) era o mais político e visceral de todos os meus romances (estranho porque eu o considero o mais comportado) porque era um falso policial, um falso livro de vampiros e um falso livro de história de prisão, tudo ao mesmo tempo. A visão desse leitor até hoje não saiu da minha cabeça. Tentando ser objetivo, acho que abordo pessoas que estão em situações-limite e tentando escapar dessa condição desgraçada; sob essa perspectiva, posso garantir, continuo escrevendo sempre a mesma história.

Saiba mais

PROTAGONISTAS Todos os livros de Paulo Scott foram protagonizados por mulheres. Seu próximo romance, "O ano em que vivi só de literatura", em fase de escrita, é o primeiro que não será. 

ADAPTAÇÃO - Paulo Scott já teve um livro adaptado para o cinema: a seleta de contos "Ainda orangotangos". A obra foi ajustada pelo diretor Gustavo Spolidoro, em 2008. 

SÉRIE - O projeto Amores Expressos já rendeu obras de autores consagrados da literatura nacional: Joca Reiners Terron foi ao Egito e escreveu "Do fundo do poço se vê a Lua", Daniel Galera foi à Argentina e produziu "Cordilheira" e Chico Mattoso viajou para Cuba e criou "Nunca vai embora"

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