terça-feira, 20 de agosto de 2013

Comédia sobre uma mulher em fuga

Hugo Viana



Um dos grandes escritores norte-americanos do gênero comédia, James Thurber dizia que o humor praticado nos Estados Unidos tinha como característica transformar fatos notáveis em acontecimentos ordinários, criando piadas ao modificar a percepção sobre o cotidiano. É uma definição possível para o humor de Maria Semple, 49 anos, escritora e roteirista norte-americana cujo segundo livro foi lançado no Brasil, "Cadê Você Bernadette?".

Maria parece interessada em um humor cínico, uma comédia de costumes que trata situações importantes como banalidades da rotina. A história é sobre Bernadette, mulher de 50 anos com passado notável, um gênio da arquitetura que se transformou em um tipo de eremita. Trocou, com o marido e a filha, a agitação cultural de Los Angeles por uma espécie morosa de existência em Seattle, vivendo num bairro regido por tolices, onde conta bancária define caráter, mulheres empinam o nariz e possuem a cabeça oca.

Bernadette experimenta um enjoo ainda maior quando a família decide viajar para Antártida. A partir daí, um carnaval humorado de acontecimentos excêntricos transforma a narrativa em uma busca desesperada: onde está Bernadette? Despareceu. Assim como seu livro anterior, "This One is Mine" (ainda não traduzido), Maria investiga, com humor, os dramas da mulher contemporânea, as tragédias íntimas alteradas por conflitos da rotina.

Destaque para os personagens, diferentes tipos humanos de sensibilidades histéricas, pessoas que mantêm um exterior social polido e por baixo escondem sentimentos mesquinhos. Ao mesmo tempo, são tratados como essencialmente humanos em suas imperfeições cínicas. "Eu nunca começo a criar um personagem até que ache uma maneira cômica para eles", informa a autora, em entrevista por e-mail. "Quando eu criei os esboços, pude começar a escrever. E então os personagens cresceram e se tornaram mais humanos enquanto eu progredia", explica.

O livro possui uma estrutura narrativa peculiar: boa parte da história é contada através de documentos - conversas via e-mails, mensagens, recados gravados, posts em blogs -, uma exaustiva compilação de evidências que podem apontar o que aconteceu com Bernardette, os motivos de seu desaparecimento, o destino de sua fuga.

Não se trata de exercício de estilo virtuoso, a tentativa de inventar algo diferente e descartável, mas uma maneira de narrar que intensifique a imersão na história. Há um motivo para essa estrutura, revelado perto do fim, além de ser uma opção que ressalta, de maneira criativa, o humor de uma pequena comunidade, colocando situações cômicas e trágicas na voz e nos modos de quem experimentou.

Maria é reconhecida por roteiros escritos para séries de humor como "Louco por Você", seriado dos anos 1990 sobre o momento em que jovens de 30 e tantos anos se tornam adultos, adquirem responsabilidades familiares e independência financeira, enfrentam crises do amor, e "Arrested Development", sobre uma família rica que perde a fortuna e precisa adaptar hábitos a uma rotina sem requintes, uma crítica aos modos da primeira classe e ao mesmo tempo uma visão humorada sobre picuinhas familiares.

"Eu amo a liberdade da escrita de um romance", diz Maria. "Tudo e qualquer coisa pode acontecer. Ninguém está pedindo para seu livro ser escrito - é uma arte - então não há regras. Eu amo isso. Tenho muito orgulho do meu trabalho para a TV, mas estou satisfeita por ter achado a ficção", ressalta.

Saiba mais

ADAPTAÇÃO O direito de adaptação para o cinema de “Cadê Você Bernardette?” foi vendido para os produtores de "Jogos Vorazes" e "A Hora Mais Escura". A adaptação será feita pelos roteiristas de "500 Dias com Ela".

TEXTOS Maria contribuiu com roteiros para séries como "Elen", "Suddenly Susan" e "Barrados no Baile".


"O humor possui
uma natureza animal"

O enredo tem um tipo de humor baseado em observações sociais, criando piadas ao exagerar situações do cotidiano. Como trabalha o humor em sua literatura?
Eu não penso muito sobre humor. Para mim, humor possui uma natureza animal. Ou você é engraçado ou não é. Ou vê coisas como sendo essencialmente cômicas ou não. Em quase tudo que eu vejo encontro humor. Minha opinião sobre pessoas, eventos, política é essencialmente cômica. Então, quando começo a escrever, tento encontrar humor. Escrever livros demora anos. Meus personagens precisam manter meu interesse por todo esse tempo. A maneira segura de fazer isso é eles me fazerem rir. Assim que eu descubro algo que não tem senso de humor, seja um livro, filme ou série de TV, perco interesse em ler ou assistir.

A estrutura chama a atenção: boa parte do livro é feita através de textos de e-mails, cartas. Como chegou a esse arranjo?
O livro começou com a personagem Bernadette, que é um pouco autobiográfica. Como Bernadette, me mudei de Los Angeles para Seattle e tive dificuldades para me ajustar. Tinha sofrido um duro contratempo na minha carreira e, ao invés de seguir em frente, decidi nunca mais escrever, e culpei Seattle. Um dia percebi como minha atitude era conturbada e engraçada, e a personagem Bernadette nasceu. Comecei a escrever o livro em primeira pessoa. Mas depois de mais ou menos 20 páginas, a voz de Bernadette estava tão tóxica e cheia de pena de si mesma que eu não aguentava mais. E se eu não aguentava, certamente o leitor não suportaria. Então mudei para a terceira pessoa. Mas a narrativa ficou sem graça. Apenas quando tive a ideia de Bernadette tendo uma assistente virtual, na Internet, e eu escrevi seu primeiro e-mail, que a narrativa ganhou vida. Foi tão divertido que me ocorreu que talvez eu devesse escrever todo o livro através de cartas.

Seus dois livros são protagonizados por mulheres afetadas por eventos traumáticos. O que atrai ao escrever sobre a mulher contemporânea?
Eu sempre tento escrever sobre dores muito específicas que acontecem comigo. Eu preciso de algo para me manter interessada por três anos. Esses dois livros nasceram de minhas infelicidades pessoais. Eu acho que foi Samuel Beckett que disse: "Não há nada mais engraçado do que a infelicidade". Aí está uma pessoa que possui uma visão pessimista da vida, mas é essencialmente engraçado.


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