domingo, 11 de agosto de 2013

Espaço para diálogo

Hugo Viana

Entre o escritor e o leitor existe um profissional cuja atividade é pouco compreendida: o crítico literário. Autor e crítico compartilham o interesse por debater literatura, refletir sobre o mecanismo literário e o funcionamento do mercado editorial, e desse confronto intelectual surgem certas rusgas e concordâncias que historicamente ajudaram o amadurecimento literário. "O crítico é um leitor especializado do texto ficcional", opina Alan Flávio Viola, professor de literatura e crítica da UGB-VR, organizador do livro "Crítica Literária Contemporânea", que reúne textos de autores que pensam sobre o atual momento da análise literária. Para debater este assunto, pedi aos escritores Raimundo Carrero, Fernando Monteiro e Sidney Rocha que formulassem perguntas para que os críticos Thiago Corrêa, Cristiano Ramos e Cristhiano Aguiar respondessem - questões sobre métodos de análise e inquietações da atividade hoje em dia.

Raimundo Carrero – Em geral, o crítico não reflete o objeto em análise - o livro -, mas procura aplicar suas próprias teorias sobre literatura. Vale o que o crítico pensa e não o que o artista escreve? Não seria mais correto analisar as qualidades intrínsecas da obra?
Thiago Corrêa - Teoria é ferramenta, algumas se ajustam melhor à necessidade do texto analisado. Em geral, o que vale é o texto, o livro. A questão é que “as qualidades intrínsecas da obra” são passíveis de interpretação. E isso gera mal entendidos, um crítico não é o dono da obra, assim como a intenção do autor às vezes não se concretiza. O sentido de um texto muda com cada leitor, transforma-se com a época, condição social, formação cultural. Para evitar o relativismo, o crítico tem o compromisso de fundamentar sua opinião, exemplificar argumentos e apontar trechos que justifiquem sua análise. 

Raimundo Carrero - Na França, o grande crítico da época Saint-Bevue disse que Flaubert não sabia escrever. A história provou o contrário. E agora?
Thiago Corrêa - Sainte-Beuve foi um dos defensores de Flaubert na polêmica que envolveu “Madame Bovary” e, em termos negativos, questionou incoerências históricas em “Salammbô”. Equívocos não inviabilizam o exercício crítico, mas motivam o aperfeiçoamento. Sainte-Beuve estava ligado à tradição de crítica histórica, que buscava a interpretação da obra através da biografia do escritor. Essa tradição perdeu força com o surgimento de movimentos como a Nova Crítica e o Estruturalismo, que defendiam uma análise mais centrada no texto. Hoje os Estudos Culturais nos dizem para observar as mudanças históricas para não cair na presunção de achar que a nossa verdade é absoluta.

Fernando Monteiro - Quem, atualmente, leva em consideração - quero dizer, qual tipo de leitor - o que um crítico escreve sobre um livro?
Cristiano Ramos - Cabe pergunta prévia: quem leva literatura em consideração? Ao chegarmos à resposta, às pessoas que ainda mantêm hábito da leitura, perceberemos que todas têm opinião sobre a crítica - prova de que não a ignoram. Se concordam ou não, se aceitam os caminhos e juízos sugeridos, aí são outros quinhentos. Essa “imensa minoria” não tem só uma ou duas formas de pensar a crítica, creio que precisaríamos de longo ensaio para chegar a algumas formas de ler crítica hoje.

Fernando Monteiro - Inúmeros livros publicados hoje são absolutamente desimportantes. O público não se interessa em ser alertado sobre eles. Então, o que faz, nestes dias, um crítico?
Cristiano Ramos - A literatura perdeu sua centralidade em nossa cultura. É fato. Mas ser arte coadjuvante não significa dizer que é inexpressiva. Assim como no caso do escritor, cabe ao crítico parar de choramingar, buscar espaços (novos ou de resistência), refletir sobre as demandas dos leitores, aproximar-se do mundo ao redor dos livros. Como sempre acontece, não é a literatura ou o crítico que morre, mas sim aqueles que transformam suas lidas e crenças em velhas cabeças empalhadas e penduradas na parede.

Sidney Rocha - Se temos hoje uma literatura abaixo da média, do ponto de vista de estética e visibilidade, onde os nomes que se destacam talvez sejam ainda os do século 19 e 20, como anda a nossa crítica literária? É decadente, também?
Cristhiano Aguiar - Vejo de forma diferente este debate. Não concordo que nossa literatura contemporânea esteja decadente. Pelo contrário, creio que há bons poetas e prosadores escrevendo suas obras neste momento. Muitas vezes, a impressão de "decadência" surge pelo fato de que achamos que os clássicos já nasceram clássicos. Livros que estão no centro do nosso cânone foram aclamados quando lançados? Sim, mas isso não é verdade para todos. Além disso, mesmo ao serem aclamados, suas entradas na literatura brasileira não aconteceram sem polêmicas, debates, discordâncias. Um clássico chega até nós com camadas e camadas de mediações. Enquanto isso, a produção contemporânea está criando o seu próprio lugar. Assim, não me alinho com as teorias críticas que falam de uma impossibilidade da ficção ou da escrita literária no mundo contemporâneo.

A crítica não está decadente, embora eu veja com preocupação o fechamento recente de revistas de cultura e suplementos dedicados a livros. Apesar da grande imprensa cultural estar sacudida, a crítica continua a ser uma prática constante e instigante, seja ela feita por acadêmicos, ou por críticos de outras formações e que militam em diferentes suportes.

Sidney Rocha - Antes, a crítica era parceira em denunciar formas de poder que constroem cânones. Então, crítica, cânone e construções discursivas pareciam evoluir juntos. Como vê isso hoje? A crítica não está demasiadamente presa à autoridade do passado canônico? Você não acha urgente que a crítica busque uma forma de se legitimar historicamente, compreender seu objeto e justificar suas escolhas?
Cristhiano Aguiar - Discordo da hipótese de que a crítica era necessariamente um instrumento na denúncia da constituição de formas de poder. Na verdade, é possível trabalhar com a hipótese contrária, de que seu nascimento esteve estreitamente vinculado a uma nova constituição de poder, bem como à formação de todo um novo cânone. Um dos protomomentos da crítica literária está relacionado com as práticas da inquisição, por exemplo. Para justificar a inclusão ou exclusão de um livro em determinado sistema cultural e social, os inquisidores muitas vezes faziam autênticos pareceres de apreciação da obra, nos quais levantavam questões relacionadas a valores morais, estéticos e históricos. Seguindo o mesmo raciocínio, é interessante também lembrar que nos antigos salões de arte, a crítica desempenhou um papel de mediador do gosto burguês em ascensão. Quantas vezes não tivemos a figura do crítico "oficial", cujo papel principal consistia em ser uma espécie de "guardião" da Arte? Assim, um papel político conservador para a crítica esteve em sua origem desde o seu princípio.

Por outro lado, a outra face da moeda é verdadeira: a crítica pode e deve desempenhar um papel crítico, discutindo as relações entre arte, política e mercado. Isso é cada vez mais urgente e nunca devemos esquecer esse norte ao escrevermos sobre literatura.

Acho que a crítica que importa é aquela que coloca a si mesma sob o signo de uma implacável desconfiança. Não sei se é o caso de se legitimar o tempo inteiro, porque às vezes o gesto político pode estar na recusa a uma legitimação. Nesta recusa começaria o processo de questionamento dos cânones e dos mecanismos legitimadores, muitas vezes excludentes e cheios de preconceitos no tocante a questões estéticas, raciais, geopolíticas e de gênero. Mas talvez a pergunta queira apontar para outra faceta disto: a de que a crítica não pode perder de vista a sua função social, a generosidade de dialogar com diferentes públicos.


A crítica está demasiado preso à autoridade do passado? Depende. Creio que não é possível generalizar isto, porque, felizmente, há muitos diferentes críticos em atuação no Brasil e que possuem diferentes formações, campos de ação e interesses. Talvez fosse o caso, aqui, de discutir projetos críticos individuais.

MÉTODO - Para esta conversa, os escritores formularam perguntas sem saber quem iria responder. Os críticos replicaram sem conhecer a identidade do autor das questões. 

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