quarta-feira, 11 de julho de 2012

A escrita primitiva de Dany Laferrière


Hugo Viana*



PARATY (RJ) - Alguns autores parecem falar sobre a porção universal da existência mesmo quando escrevem sobre as tradições mais particulares de seus países de origem. Parece o caso do autor haitiano Dany Laferrière, 59 anos. Em "País sem Chapéu" (Editora 34, 240 páginas, R$ 39), Dany escreve naturalmente sobre hábitos simbólicos do Haiti, como as três gotas de café pingadas no chão dedicadas aos mortos antes do primeiro gole ou o próprio título, que remete ao mundo dos mortos. A história é sobre um escritor que, aos 43 anos, regressa depois de passar duas décadas no Canadá - enredo em parte baseado na biografia do escritor -, e então reencontra a mãe e a tia morando num país politicamente arrasado, largamente povoado por pessoas cujo nível de pobreza parece assustador mesmo para o padrão do terceiro mundo. Dany escreve como um "pintor primitivo", enfatizando cores, gostos e odores, de maneira que as sensações provocadas pelo cotidiano real ou imaginado dos haitianos parecem mais importantes do que a compreensão imediata dos valores da cultura. O livro alterna capítulos chamados "País sonhado" e "País real", efetivando uma visão dupla, política e afetiva, sobre uma região significativa em termos pessoais. Nesta entrevista o autor explica seus métodos e tradições do Haiti. 


O personagem do livro é um escritor. Como enxerga o recurso do escritor dentro do enredo? 
Eu fui jornalista por um longo tempo no Haiti e no Canadá, e nesse livro utilizo as experiências que tive como jornalista: um escritor que observa e conta o que vê através da literatura. Assim como Hemingway. Para mim a literatura é lembrar, então meus livros têm que se parecer com minhas experiências passadas. A inspiração não vem de cima, vem da base, do que vivi. As pessoas gostam de ler jornal, então me perguntei se poderia colocar o estilo jornalístico na literatura.


No livro existe o conceito de “escritor primitivo”, que talvez que se encaixe nessa ideia de alguém que está presente na cena e para escrever se apropria dos elementos ao redor. 
O escritor primitivo vem do pintor primitivo, que é considerado um pintor não-intelectual, que utiliza a essência e não a teoria. Quando olhamos uma pintura encontramos o ponto de fuga, que mostra o fundo do quadro. O quadro convida a pessoa que o observa a entrar em seu interior. Na pintura primitiva tudo está no primeiro plano e o ponto de fuga não está no quadro, e sim no plexo de quem observa. Na pintura primitiva as cores ressaltam a cena e para ver melhor a pessoa se afasta, enquanto a pintura clássica faz com que o espectador se aproxime.


E como aplica esses conceitos da pintura primitiva na escrita? Podemos falar de uma escritura emocional?
Sim, emocional, instintiva, que usa muito as essências, as cores, os odores, o gosto. Assim a pessoa que lê não pode julgar; o mundo que eu apresento é vivo, tudo está lá. 


O livro é biográfico? Existe ficcionalização no enredo?
Sim, 80% é autobiográfico, mas não podemos dizer que é uma biografia, é literatura, não quero informar o leitor sobre minha vida. Eu quero saber se posso utilizar elementos da vida cotidiana na literatura. 


Um trecho em particular me fez pensar na possibilidade de biografia, em que você volta para casa e sua mãe e tia, antes de você sair para a cidade, fazem uma espécie de ritual, e apenas depois você percebe que elas choravam. É uma cena muito íntima. Você enfrentou dilemas sobre a exposição pessoal?
Não tive preocupação de entrar na história de minha família. Quando eu era criança costumava ler os clássicos e ver documentários sobre grandes autores como Tolstoi ou Flaubert, que exibiam as cidades em que eles cresceram, a casa onde viveram e isso sempre me fascinou, o relacionamento entre literatura e realidade. Então foi natural colocar minha família nos livros. No Haiti tem muitos escritores, mas não pessoas nos enredos, e eu achava que minha mãe e minha tia mereciam estar na literatura. Uma vez perguntaram a minha avó o que achava de estar em meus livros, e ela disse que gostava porque agora não precisava se lembrar das histórias, já que estavam registradas. 


O livro traz a ideia de retorno, de voltar a encontrar pessoas e lugares, neste caso um país politicamente diferente. Gostaria de saber primeiro sobre essa volta, e depois como foi a escrita sobre a volta. 
Quando entro nessas questões de escrita é como um labirinto, eu me perco. Escrevo com o máximo de realidade, mas também de sonho. Antes desta entrevista comecei a pensar que converso com a mesma liberdade com que escrevo, então daqui a 30 ou 40 anos quando eu não me lembrar de muita coisa e ler esta entrevista eu não saberei onde se encontra a verdade. O tempo da literatura é um tempo voluntário, nós escolhemos ambientar o livro naquele momento por determinadas razões. O tempo da vida é involuntário, nós não sabemos como as coisas vão se passar. Minha vida se tornou uma ficção. É assim que eu passei 36, 37 anos no exílio. Um terço da minha vida eu passei com gente que não me conhece. Aqui eu não tenho testemunhas. No Haiti, se você diz qualquer coisa sobre mim, alguém pode dizer: 'É mentira! Eu conheço a mãe dele'. Aqui eu posso dizer o que eu quiser, e eu digo muitas coisas que não são verdades. Eu sou um escritor, e não sei mais o que é ficção e o que é realidade. 


Então podemos dizer que você não divide a vida pessoal e a literatura?
Na realidade eu me sirvo de minha biografia para fazer literatura. Minha biografia é feita de histórias que chegaram a mim por ser escritor.


Você falava do exílio, quando viveu 20 anos no Canadá. Qual a sensação ao apresentar as tradições do Haiti a esse leitor, que tem uma cultura tão diferente da haitiana? 
Isso é a literatura, aumentar histórias pessoais para o nível universal. Uma prima minha que morava em Petit Goave em minha infância me perguntou: como o leitor estrangeiro vai entender o odor do café, essas são coisas que ninguém vai compreender. E eu disse: mas não é uma questão de compreensão, é de sensibilidade. Lemos livros que já têm séculos, e a gente sente coisas que ninguém mais pode sentir, é particular a cada um, é o milagre da escrita. 


O livro é dividido em país sonhado e real; essa parece uma forma criativa de debater algo ao mesmo tempo afetivo e político. Como pensou essa estrutura?
Para mim a política é um assunto íntimo. No meu trabalho de escritor procuro primeiramente a realidade e em seguida a política no interior dessa realidade. A política invade a vida nos países do terceiro mundo. Eu quis separar essas duas realidades para não deixar o elemento político invadir, para mostrar também a vida. Na literatura africana ou caribenha, onde há ditadura, a política está no primeiro plano, e a vida no segundo plano, e eu não quis isso, não queria que a política predominasse. É isso que os ditadores tentam fazer, que tudo se torne político e as pessoas não tenham mais uma vida. As pessoas dizem: queremos derrubar esse ditador, não dizem: eu quero viver. O que está em jogo é o poder, e não a vida. 


*Viagem a convite do Itaú Cultural

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