segunda-feira, 23 de julho de 2012

Representação sexual e humorada de Deus


Hugo Viana


Existe na cultura ocidental um catálogo de imagens bíblicas que oferecem representações visuais de cenas ou personagens importantes da história religiosa. Temos então a noção de Jesus como um bondoso homem branco de olhos azuis, cabelo longo e barba, e Deus como um respeitável senhor de cabelo, barba branca e túnica branca.

Na história em quadrinho "Deus, Essa Gostosa" (Companhia das Letras, 88 páginas, R$ 33), Rafael Campos Rocha sugere uma outra forma de desenhar Deus: uma mulher negra, cabelo afro e interessada em boxe. Subversão acentuada ao colocar Deus como dona de um sex-shop e enfaticamente apaixonada por sexo e constantemente irônica sobre sua condição onisciente.


"Fiz um deus que contrapusesse o Deus mais comum que aparece tanto nas doutrinas religiosas quanto nas obras de arte ocidentais", explica o autor. "Portanto, se ele costuma a ser branco, imperial, casto, prepotente, moralista, legislador, um verdadeiro WASP de meia-idade, achei que o meu deus deveria ser uma mulher, negra, sexuada, amável, divertida e algo indiferente as opções de vida das pessoas. Meu Deus não se importa com o que é Certo. Não tem nada que ela julgue Errado. A mesma coisa com a Verdade e outros dogmas", ressalta. 


Esta é a primeira graphic novel de Rafael, mas o autor já em amplo trabalho na área visual. É artista plástico (apresentou uma exposição no Mamam "Deus, Messi, almoço interminável (não necessariamente nessa ordem)", em que apresentava a personagem do lançamento) e parte de seu trabalho pode ser visto em seu blog (http://rafaelcamposrocha.blogspot.com.br). 

Na HQ a motivação não parece ser blasfemar o pensamento religioso, mas repensar através do humor certos dogmas ou discordâncias que geram conflitos, relacionando arte, religião, sexo e pecado. "É mais um deboche agressivo do que uma ironia. Note que também não estou julgando a opção religiosa de ninguém. É só que não consigo realmente me preocupar com a forma como as pessoas usam seus genitais", avalia Rafael. 


A HQ segue uma estrutura relativamente aberta, sem se prender a um enredo propriamente fixo, um pouco como se a história fosse sendo criada enquanto era desenhada. "Eu não faço um plano geral da obra, vou escrevendo e desenhando página à página", revela Rafael. "Quando muito, faço um esquema geral no papel de uma sequência de quatro páginas, no máximo. Aí escrevo, diagramo e desenho. Quando uma página está totalmente finalizada começo a outra. E assim por diante", ressalta o autor. 


Para contar a história dessa curiosa interpretação de Deus, o autor se apropriou da ideia de criação do universo em sete dias, tratando de elementos sagrados da religião a partir de referências da cultura pop. "Acho difícil saber onde parar e começar outra parte da história", diz Rafael. "Estava empacado na quarta página quando perguntei pro André Conti, meu editor na Companhia das Letras, como eu poderia organizar o livro. E ele disse: 'Divida em sete dias'. Achei uma grande ideia. Uma estrutura firme permite que você fique mais livre pra criar, pelo menos no meu caso", aponta.



"A 'Arte' foi superada
pela cultura popular"


Gostaria que você falasse sobre estilo e técnica de desenho. Como foi desenvolver visualmente este projeto?
Eu desenho diretamente no tablet, com o Photoshop. Mesmo o rascunho e anotações. Às vezes pego quatro folhas de sulfite e rascunho uns quadrinhos e a fala que vai neles, com um esboço muito tosco da posição dos personagens. Depois vou direto pro Photoshop, onde, em geral, modifico tudo. Pra fazer esse trabalho eu tive um período maior de concentração, sempre interrompido pela demanda do jornal e alguma revista. Foram uns seis meses desenhando direto. Depois fui fazendo pequenas modificações por um ano, enquanto eu já começava o meu segundo livro. Pensei em fazer uma graphic novel quando li "Issac, o pirata" de Christophe Blain, mas só me resolvi mesmo quando o André, da Companhia das Letras, me chamou. 

A certa altura deus e satã conversam sobre a arte e como as pessoas enxergam a distinção entre alta e baixa cultura. Esse trecho representa seu ponto de vista? 

Olha, representa mais a minha irritação com essa distinção, que não está isenta de rancor com relação aos meus contatos humanos com gente que se considera "alta cultura". Não acho que pastel seja melhor que literatura, mas entendo perfeitamente que uma pessoa prefira pastel à literatura. E que essa pessoa seja muito mais agradável, bondosa e inteligente do que um tradutor de grandes obras da literatura alemã, por exemplo. Depois, acho engraçado o desagrado que isso possa causar na gente que vive da fetichização da cultura. Não conheço nenhum artista produtivo sério que faça essa distinção. 

Então vem daí esse interesse de misturar elementos da cultura pop e personalidades intelectuais? 

Eu acho realmente que o Laerte e o Nelson Cavaquinho são muito melhores artistas do que o Guimarães Rosa e o Hélio Oiticica, por exemplo. As pessoas vão dizer que não se pode comparar, mas eu respondo que não comparar é um racismo e um classicismo que desabona somente a "alta cultura", a única beneficiada por essa distinção. Sei lá, acho essa coisa de Arte (com maiúscula) uma coisa muito burguesa e eurocêntrica. E que foi superada pela cultura popular industrial. Por outro lado, eu gosto muito de arte. Gente como Francis Alys, Andrea Fraser, Roman Ondak e Paul MacCarthy me mantém sempre acordado pra arte. Sem falar no neo-expressionismo alemão, período que adoro. Kippenberger é meu herói pessoal, assim como Immendorf. Também gosto muito de vários escritores, como Bruno Schulz, Robet Walser. Além de Marx, Foucault, Joyce, Homero... sei lá. Sou um consumidor de arte. Assim como sou um consumidor de quadrinhos e música pop. Não consigo entender como alguém que ame essas coisas possa fazer distinções qualitativas do gostar. 

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