segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Prazer pela literatura de gênero


Foto: Gabriela M. O

Hugo Viana
 

O termo "pulp fiction" se refere a um tipo de publicação barata, pequenos livros que entre os anos 1920 e 50 exageravam meio sem vergonha em violência e sexo (para os padrões da época) e custavam U$ 0,25 centavos ou menos. Nestes livros existia uma espécie de desejo por brutalidade, a vontade de narrar histórias que chocam ou geram curiosidade, algo como um excêntrico show de horrores ("pulp" remete também a páginas impressas no papel mais barato possível, feito da polpa da madeira).

Livros compostos por histórias que pertenciam a gêneros definidos (horror, ficção científica, crime) e que revelaram grandes autores (como, por exemplo, Isaac Asimov, William S. Burroughs e Raymond Chandler). No Brasil não existiu, ao menos não tão forte quanto nos Estados Unidos, a tradição da literatura pulp. Não exatamente para preencher esse espaço, mas para ressaltar o prazer que há em histórias marcadamente de gêneros, a editora gaúcha Não Editora lança o quinto volume da série "Ficções de Polpa", que nesta edição trata de histórias de aventura.

Esse projeto é como uma máquina do tempo artesanal; a capa, a diagramação e a escolha por anúncios de jornais seguindo a tradição de uma imprensa sensacionalista norte-americana dos anos 1950 sugerem a conexão com o espírito da literatura pulp, feito por uma editora do mercado independente. Mantendo a tradição de décadas atrás, Ficção de Polpa coloca, na capas, a imagem de uma mulher com pouca roupa aguardando desesperada ser resgatada por um herói enquanto algum vilão permanece à espreita: um tipo de realidade 100% dividida em bem e mal, carregada de tensão sexual e sugestão de violência.

Nos textos de cada pequeno livro é possível notar um interesse apaixonado pelas engrenagens dos gêneros; no primeiro volume, "Horror", há textos que incentivam certo ranger de dentes e franzir de testa, indícios de efeitos físicos do horror. Na quarta edição, "Crime", os contos tratam, de maneira original, temas marcantes, como a mulher fatal e o suspense investigativo - o tipo de leitura que fascina pela relação entre curiosidade e mistério. Neste lançamento, "Aventura", a proposta é remexer um imaginário fantasioso que envolve cenários exóticos e aventuras fantásticas: florestas, geleiras, dinossauros, tesouros e o tradicional capa e espada.

Talvez o diferencie esse projeto de algo como uma referência exclusiva à literatura do passado seja a maneira como esses gêneros são interpretados de maneias criativas pelos autores envolvidos - são textos que têm a herança pulp mas parecem reconfigurar para uma certa atmosfera contemporânea.

O organizador da série, o escritor Samir Machado de Machado, explica que embora a atmosfera da literatura pulp esteja presente no projeto gráfico, os textos se referem a maneiras contemporâneas de interpretar a cultura pulp de décadas passadas. "Michael Chabon, uma influência para a concepção de Ficção de Polpa, disse que depois de 'Eneida' toda a literatura é fanfic. O que sobra são referências passadas, mas alguém precisa colocar elas em perspectiva com o mundo que se vive, para que disso se possa tirar uma interpretação do presente, ou fazer uma ressignificação do passado. Algo, aliás, que só a literatura contemporânea pode fazer", ressalta Samir. 


  "Pulp é a base da indústria cultural americana"

Gostaria que você falasse um pouco sobre a Não Editora. Como surgiu e que propostas vocês tinham?
A ideia era bem simples: um grupo de amigos e conhecidos que, egressos das oficinas de criação literária de Porto Alegre, queriam encontrar uma forma de publicar seus livros com mais qualidade editorial do que víamos disponível - em termos de editoração, design gráfico, divulgação e distribuição. A ideia era publicar nossos textos e de quem mais chegasse, garimpar novos nomes e fazer com que a editora servisse de trampolim para estes autores.

O que motivou a criação da série "Ficção de Polpa"?
Ficção de Polpa surgiu um pouco antes da Não Editora - e acabou servindo de catalisador. Eu queria publicar algo bacana, tanto meu quanto de amigos que escreviam bem, e sempre gostei de literatura de gênero. A ideia de algo que fizesse referência à literatura pulp veio quando me dei de conta que o pulp é a base da indústria cultural americana - nos quadrinhos, nos filmes, na literatura de gênero. Eu queria uma literatura com um foco claro no entretenimento do leitor mas que, ao mesmo tempo, mantivesse uma pretensão autoral.

Talvez mais do que os contos, chama a atenção o projeto gráfico: a capa, a diagramação, a escolha pela estética de publicidade e jornais antigos. O interesse era homenagear o gênero pulp?
Sim. Não quis que os textos em si simulassem o pulp, que é um estilo e uma linguagem presos a um tempo e espaço. Mas no projeto gráfico, eu adoro a estética pulp, e o que mais gosto é o quanto ela é absurda, exagerada, politicamente incorreta e até preconceituosa sem se dar conta disso. As escolhas dos anúncios publicitários reflete essa visão de mundo, uma realidade preto-no-branco que não questiona os próprios valores, e esse contraste entre o passado (o projeto gráfico) e o presente (os textos).

Como foi o processo de seleção de textos deste volume? Como definir o que constitui o gênero "aventura"?
Alguns já eram conhecidos, outros eu fui atrás e outros me foram indicados. Eu queria que o conjunto dos contos fosse o mais abrangente possível - piratas, nazistas, dinossauros, ladrões de tesouro, a Antártida, capa-e-espada. Porque o próprio gênero aventura nem bem é um gênero, é mais uma sensação que o texto transmite: excitação, maravilhamento, apreensão e, quase sempre, retorno. A minha definição do que consiste uma aventura é, basicamente, uma história - com perigos, assombros - que lida com a relação de um personagem com o cenário que ele atravessa.

No Brasil, diferente de outros países, não existiu uma forte tradição de literatura de gênero. Por que acha que isso aconteceu?
Bem, existir, até que existe - o leitor brasileiro não parece se interessar por uma produção nacional de literatura de gênero. Em parte, talvez seja um pouco de preconceito cultural com nós mesmos, porque muito do que se tentou produzir aqui foi mais um pastiche do que uma adaptação de estilos com o qual outros países têm mais tradição. Olha a ficção científica, por exemplo: talvez tenhamos nos acostumado a pensar a tecnologia de forma tão passiva, como algo que vem de fora, que isso acaba se refletindo na nossa aceitação das possibilidades de uma ficção científica brasileira. Ou da dificuldade de escrever fantasia quando nos falta uma Idade Média e olhamos com desdém pra culturas indígenas ou regionais. Dificuldade, não impossibilidade, claro. Sou otimista quando à mudança desse quadro.

SERVIÇO

"Ficção de Polpa: Aventura", vários autores
Não editora, 208 páginas, R$ 29,90

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