segunda-feira, 8 de abril de 2013

Comédia da vida privada em tempos modernos


Hugo Viana


Foto: Caroline Bittencourt

A família e as formas de se relacionar mudaram ao longo do tempo, e "Machu Picchu", oitavo livro do escritor e guitarrista do Titãs Tony Bellotto, aproveita o que há de cômico nessa nova configuração. A história é dividida em duas partes. Na primeira, um casal quarentão está voltando para casa, cada um em seu carro, para comemorar 18 anos de casamento com jantar romântico. Bellotto alterna dois pontos de vista, o do homem, Zé Roberto, e o da mulher, Chica, enquanto um trânsito exageradamente real testa a paciência do casal. Zé nunca traiu, mas vem pensando com fervor manual nos contatos virtuais, através de chats eróticos e webcam, com W19, mulher jovem de pernas longas que parece a representação sexual de uma doce inocência, uma Lolita vagamente fácil e perspicaz. Chica ama seu marido, pai tranquilo e amante apaixonado, mas mantém relacionamento com Helinho, médico bigodudo que suporta duas rodadas sem pedir tempo. Na segunda parte essas verdades transformam o enredo num carnaval de grandes revelações, o humor baseado no exagero farsesco. O livro, comédia sem credencial dramática, avalia o circo familiar e o desespero da idade com certa truculência, recorrendo ao humor como maneira permanecer popular. Nesta entrevista, o autor explica motivações e comenta a criação dos personagens.

Gostaria que falasse sobre a simbologia do título, "Machu Picchu", o cemitério de automóveis, e da capa, um trânsito que leva ao fim do mundo, um problema que as capitais do Brasil enfrentam.
Machu Picchu é a fotografia de uma civilização extinta, um espaço lúgubre habitado por fantasmas de quem pouco sabemos. O cemitério de automóveis é o Machu Picchu do futuro, a incógnita que deixaremos como legado de nossa civilização. O livro fala também sobre isso, sobre um tempo de mudanças, em que uma sociedade que buscou a mobilidade e a velocidade a qualquer preço acabou imobilizada num enorme congestionamento.

Você criou duas partes: a primeira, com depoimentos humorados sobre a crise de meia idade, e a segunda, uma espécie de humor farsesco. Como pensou essas partes, e como o exagero cômico ajuda o drama da história?
Realmente na segunda parte, a do jantar, pedia desde o começo um tom burlesco, pois foi pensada assim, como um desfecho de vaudeville, de comédia de costumes, teatral. O exagero foi necessário na medida em que toda a trama - e a vida familiar em especial - é mesmo uma grande comédia. Para qualquer um. Pense na sua própria família...

Na primeira parte, mais longa, você alterna confissões do homem e da mulher, numa narrativa composta por duas perspectivas. Como chegou a essa estrutura?
Comecei escrevendo pelo ponto de vista da personagem feminina, a Chica. Narrava em primeira pessoa, e achei que o livro seria inteiro narrado por ela. Porém outros personagens se intrometeram na narrativa, e acabei optando pelas narrativas alternadas na primeira parte do livro. Na segunda parte, no jantar em que tudo se precipita, achei que adotaria as mesmas narrativas alternadas da primeira parte, mas não funcionou. Depois de muitas tentativas, acabei optando pela narrativa em terceira pessoa na segunda parte, com uma pegada teatral e farsesca.

Assim como "O buraco", seu livro anterior, você trata do tempo: a juventude passou, os dias de glória estão perto do fim, o passado amoroso parece mais atraente. Poderia comentar essa recorrência?
Acho que a finitude é um dos grandes temas de todos os tempos. Quando você chega aos 52 anos - meu caso - começa a pensar na sua própria morte, não tem jeito.

Um tema importante do livro é a família: a construção e as novas configurações na relação entre pais e filhos. O que te atraiu neste assunto?
A família sempre me atraiu como tema. No disco "Cabeça Dinossauro" há uma canção minha e do Arnaldo Antunes que se chama "Família". As tragédias gregas são todas baseadas em dramas familiares. Nelson Rodrigues, nosso grande dramaturgo, explorou as relações familiares de forma brilhante. É um tema que me interessa por ser paradoxalmente trágico e cômico.

Como foi a composição dos protagonistas? Você enfrentou problemas com a personagem da mulher? Ela tem menos depoimentos do que o homem (às vezes o trecho narrado por Zé segue por dois ou três seguidos, prendendo mais o leitor).
Bem, pode ter havido um conflito interno, um ataque súbito de "machismo" enrustido, mas o livro foi inicialmente concebido para ser narrado pela personagem feminina. Me diverti à beça descrevendo em primeira pessoa as transas dela com o marido e o amante...

Em seu blog na editora Companhia das Letras conhecemos mais sobre seu lado leitor/escritor, enquanto a música é normalmente o campo artístico ao qual você é mais associado. Uma influência a outra?
São formas bem distintas de atuação, mas têm pontos em comum. A disciplina necessária para a criação é a mesma. A fluência com as palavras, que o exercício da prosa acarreta, ajuda bastante no trabalho de feitura das letras de música. E o mais importante, a alternância do silêncio e solidão da escrita literária com o ruído e coletividade da produção musical me fazem muito bem e me conduzem, numa visão meio zen, a um equilíbrio improvável.

SERVIÇO

"Machu Picchu", de Tony Bellotto
Companhia das Letras, 120 páginas, R$ 32

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