sábado, 23 de julho de 2011

Desenhos da colônia penal de Kafka

Hugo Viana



O autor tcheco Franz Kafka parece ainda assombrar gerações de escritores, permanecendo na história da literatura como um especialista em falar sobre o cotidiano nos termos do pesadelo. Seus livros transformam a rotina em crônicas do horror, em que forças externas parecem impedir qualquer sugestão de humanidade. A obra de Kafka é inspiração para a história em quadrinho "Na Colônia Penal" (Companhia das Letras, 56 páginas, R$ 33), baseada num conto com mesmo nome do autor, com roteiro de Sylvain Ricard e desenhos de Maël.

A história narra uma breve conversa entre um viajante e um oficial da justiça que está prestes a comandar a execução de um prisioneiro com uma máquina terrível de tortura. O prisioneiro não sabe o crime que cometeu, também não tem direito a se defender em julgamento, mas de qualquer forma é considerado culpado por um sistema que não esclarece suas leis, e é condenado a uma morte dolorosa, um exemplo da ironia de Kafka sobre o funcionamento das instituições de poder.

"É um aparelho singular", diz o oficial, na primeira imagem, fascinado pelo potencial destruidor desse objeto de guerra. Mais ou menos metade da HQ é dedicada à descrição detalhada dos horrores causados por esse instrumento de tortura, explicando todo o processo de morte como se falasse sobre o funcionamento de uma peça mecânica qualquer, num tom mórbido de pouca ou nenhuma humanidade.

Parece curioso transformar em imagens a escrita de Kafka, em que essa sensação de pesadelo parece vir justamente pela ambiguidade das palavras. Em "A Metamorfose", livro que também foi adaptado para uma HQ, o protagonista Gregor Samsa acorda numa certa manhã, depois de um sonho agitado, e percebe que se transformou "numa espécie monstruosa de inseto", "com um dorso duro e inúmeras patas". Essas frases são fortes o suficiente para inquietação imediata, mas ver numa HQ simplesmente a imagem de uma barata assustada parece de alguma forma diminuir o texto original, ou ao menos provocar sensações de outras naturezas, distantes das perturbações originais.

Algo parecido ocorre em "Na Colônia Penal". Boa parte da HQ é composta por diálogos, sendo basicamente uma sequência de quadrinhos preenchidos unicamente por personagens falando, um pouco como se a imagem fosse menor diante da palavra. Essa representação visual meio que desmistifica o grande poder do texto original, mostrando em palavras o que antes era um terror invisível, um produto que de alguma forma dimensiona ambições de homens inebriados pelo poder.

A história é ambientada em um local não definido, um território desconhecido, mas ao mesmo tempo vagamente familiar, talvez uma síntese histórica de situações de dominação do homem pelo homem. A premissa parece ser perfeitamente adaptável para vários momentos da história mundial, sendo as guerras, as ditaduras e o poder da burocracia sobre o indivíduo comum referências naturais.

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