quarta-feira, 20 de julho de 2011

O mistério literário de Enrique Vila-Matas

Hugo Viana



O autor espanhol Enrique Vila-Matas parece escrever a partir do que observa em seu próprio ofício, a literatura, e suas palavras sobre o mercado e a arte da escrita são em geral dotadas de algum bom humor negro. Enrique fornece a versão irônica dos fatos, relata grandes ou pequenos momentos nem sempre autênticos da história da literatura, temas que também fazem parte de seu novo livro, “Dublinesca” (Cosac Naify, 320 páginas, R$ 59).

O livro é sobre Samuel Riba, 60 anos, ex-alcoólatra e também ex-editor de livros, atualmente habitante recluso de casa pequena. Riba é usuário obsessivo do Google para assuntos banais e prefere não abandonar sua etiqueta pessoal sem uma lista mental criteriosa de motivos que assegurem a necessidade casual do imprevisto. Sua manhã tradicional inclui desvios fortuitos por blogs de literatura, para concordar ou talvez comentar nervosamente contra algum jovem crítico anônimo que esnobou um dos autores que Riba, em seu passado lustroso de editor, publicou. Ou então um passeio saudosista por sua biblioteca pessoal, catálogo afetivo de publicações.

A rotina de Riba inclui também lembranças de tempos distantes, imagens que vêm sem pudor enquanto ele toma um café ou fala ao telefone, memórias de suas noites bêbadas com colegas escritores, quando as coisas pareciam possíveis. São muitos autores citados ao longo do livro, em geral registros nostálgicos, alguns reais outros inventados para servir aos propósitos narrativos de Vila-Matas, escolha que parece reforçar a vontade desse autor em debater a imanência da literatura em termos puramente pessoais, o parâmetro mais interessante.

A escrita de Enrique parece ser aquela do apaixonado pela palavra impressa, pelo cheiro de tinta no papel, pela textura da folha nos dedos. Um livro sobre o amor aos livros, um amor nada romântico e possivelmente trágico. Em alguns momentos “Dublinesca” parece agradável apenas na instância da citação, mas depois entra um tipo de política de oposição aos tempos modernos, à metodologia da era digital, que torna explícito o tema do livro: a passagem do tempo e as mudanças nos valores que acompanham essa transição.

Esse tema integra o desenvolvimento da história a partir de um ponto central: Riba, num acesso imprevisto de mentira, fala para a mulher e para os pais que vai para a Irlanda no dia 16 de junho, quando o país comemora o Bloomsday, em homenagem ao personagem Leopold Bloom, de “Ulisses”, de James Joyce. Essa viagem, explica Riba, seria um tipo de celebração melancólica do fim da era Gutemberg, o funeral da palavra impressa, uma paródia necessária para a passagem para outra época, a era digital, o reinado do Google.

Enrique narra essa história como um fluxo descontrolado de consciência, um texto aparentemente sem rumo sobre um velho um tanto ranzinza perdido nos labirintos da idade; uma escrita em terceira pessoa que acompanha com afeto evidente o protagonista enquanto ele se distancia emocionalmente do cotidiano e se revolta contra suas próprias escolhas.

No meio de uma conversa qualquer, com seus pais ou sua mulher, Celia, sobre viagens passadas ou a respeito de seus livros de cabeceira, Riba se perde em pensamentos diversos, fabulações internas que parecem, em alguma medida, a síntese perfeita entre os livros que ele leu, ouviu falar, ou ainda pretende algum dia encontrar. É como se sua vida fosse na verdade pautada por algum tipo de mistério literário, ideia que talvez Villa-Matas identifique como sua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário