quinta-feira, 21 de julho de 2011

Os reflexos da má companhia

Hugo Viana



A literatura mundial não apenas tem cânones estabelecidos, escritores lembrados em livros de história ou publicações biográficas, mas tem também o outro lado sujo e alternativo dessa mesma história, uma região meio indefinida composta por autores que escrevem sobre certos traumas de qualquer geração, mas se reportam a respeito desses temas com pouco (ou nenhum) pudor.

A editora Companhia das Letras lançou em abril o selo Má Companhia, que tem como proposta inicial resgatar livros ou autores, nacionais ou estrangeiros, que foram injustamente ou talvez ironicamente catalogados como nocivos ou malditos. "Essa categoria 'escritores malditos' é um troço muito dúbio", avalia André Conti, editor responsável pelo selo. "Às vezes esse rótulo parte de algum ressentimento, ou então é baseado na aceitação ou não do público. Nossa ideia é relançar esses autores 'malditos', com livros de bolso, edições populares, a preços camaradas", resume André.

Essa pequena transgressão conceitual que rege o selo esteve presente desde o nascimento da Má Companhia, que não seguiu regras ou análises de mercado - foi meio que por acaso, durante uma conversa banal. "Luiz Schwarcz, editor chefe, estava jantando com os escritores Marçal Aquino e Joca Terron. Joca tinha bebido um pouco de vinho e meio de sacanagem comentou que a gente já tinha a coleção 'Boa Companhia', então deveria ter também a má. No dia seguinte Luiz trouxe a ideia para a Companhia e disse: 'Vamos fazer'", lembra André.

O selo entra no mercado editorial inicialmente com três livros, "O Invasor" (2002, R$ 19), de Marçal Aquino, e duas publicações de Reinaldo Morais agrupadas num único projeto: "Tanto Faz" (1981) e "Abacaxi" (1985), por R$ 25. "Escolhemos começar com esses livros simplesmente porque gostamos deles", justifica André. "O de Marçal estava esgotado e 'Abacaxi' estava fora de catálogo. Não teve um estudo prévio, foi uma escolha que aconteceu naturalmente", explica.

O estilo desses livros desafia esse suposto estigma de produções maléficas, com erupções abruptas de escatologia ou violência, mas tudo meio que conscientemente utilizado para ressaltar um desespero quieto de cada geração. "Tanto Faz" e "Abacaxi" relatam os excessos sem regras do personagem Ricardo de Mello durante uma jornada de São Paulo até a França, e depois Nova Iorque, narrando as aflições de um homem de 30 e poucos anos diante do tédio e da liberdade sexual. Já "O Invasor" é uma pequena crônica de 120 páginas e algumas toneladas sobre as trapaças da cidade grande, São Paulo, enfatizando a repercussão do crime a partir do ponto de vista moral.

"A gente não quer se limitar a livro sobre bebida e vida bandida", alerta André. "Estamos interessados em textos que tiveram algum impacto, foram censurados, causaram algum tipo de furor pela forma ou pelo conteúdo na época do lançamento. Não precisa ser necessariamente um romance, pode ser um soneto, uma poesia ou uma crônica, publicações de todas as épocas e países. Mas também pode ter um pouco de sacanagem e de drogas", ressalta.

Biografia ficcional de uma geração em trânsito

A escrita de Reinaldo Moraes é certamente exemplo irônico do que supostamente seria uma literatura maldita. A história narrada nos livros "Tanto Faz" e "Abacaxi", sequência informal lançada quatro anos depois, descreve com precisão obscena as descobertas sexuais de Ricardo de Mello e suas intensas experiências com cigarros, bebida, drogas e amores expressos quase nunca bem sucedidos, sendo essa mistura de referências uma forma de relatar com dignidade distraída o cotidiano de uma geração perdida entre o fim da ditadura e o início da abertura política, nos anos 1980.

Nesse sentido, o livro pode ser visto como uma biografia ficcional de uma geração em trânsito, atordoada por mudanças sociais e políticas, perseguindo de um jeito um tanto neurótico e torto uma identidade em meio ao caos, sendo o título "tanto faz" algo de revelador desse estado de espírito. Ricardo é um estudante de economia enviado para a França para fazer um doutorado, sendo bancado pela empresa que trabalha em São Paulo. Mas quando chega a Paris, fica perdido entre sessões de filmes clássicos na cinemateca francesa, cafés, dias e noites testando drogas e troca de olhares com cada petite femme qui passe.

No meio disso tudo tem também um exercício literário não só de estilo, com uma verve excêntrica carregada de neologismos, mas também narrativo, já que cada capítulo varia entre uma frase qualquer ("Alguém aí por acaso sabe como é que faz para ser frívolo e brejeiro como um dândi?"), uma cena que dura um pequeno parágrafo e algumas laudas perdidas sobre o labirinto das paixões. Além disso, o próprio autor se insere no livro, às vezes dialogando com seu personagem ficcional, que parece ser uma versão literária do próprio Reinaldo.

O livro passa a sensação de ser escrito por um autor que acredita com certa ironia que está inventando algo raro, uma literatura na forma de história fragmentada em pequenas cenas sem conexão dramática, que narram um cotidiano banal - o que em certo sentido parece questionar a própria herança da grande literatura, com feitos heróicos estridentes. Um relato abertamente despudorado sobre corações perdidos atormentados em igual medida por cigarros, bebidas, mulheres e literatura. Horizontalmente profundo, com uma estrutura aberta a interpretações que cabe tudo e meio que tanto faz.

Crônica urbana fala sobre o abismo social

Se Reinaldo Moraes tem um estilo literário em que ele requebra com a frase até o chão, criando situações excêntricas e narrando essas cenas com um tipo de desprendimento erudito, Marçal Aquino é um autor um tanto mais discreto e economicamente distante, uma escrita pautada por construções curtas e diretas. Seu livro "O Invasor" é uma crônica urbana que tem São Paulo não apenas como ambiente da história, mas também como sensação inominável de sufoco e tormento, como um espaço que domina as ações dos personagens.

O livro fala sobre dois amigos, Ivan e Alaor, que são sócios numa construtora e que se juntam para eliminar o terceiro elemento, que é o chefe da empresa. Eles contratam um assassino profissional, Anísio, mas a imprevisibilidade do cotidiano naturalmente leva o plano original por caminhos inesperados, com o livro se transformando mais ou menos num terror psicológico e trágico sobre as decisões morais do narrador, Ivan.

"O Invasor" é um livro que Marçal começou a escrever em 1997. Ao mostrar o texto ainda incompleto para Beto Brant, o cineasta viu o potencial evidente de cinema. Marçal então começou a trabalhar num roteiro de um longa-metragem, que foi lançado no mercado nacional em 2002, mesmo ano que o autor terminou o livro.

Nesse caso específico, livro e filme são duas expressões diferentes. Enquanto Brant parece interessado na figura do assassino, na narrativa de Marçal o personagem Anísio é meio que um fantasma marginal, à espreita das demonstrações de fragilidade de Ivan, que ocupa o principal foco da narrativa - suas inquietações diante da crise moral de ser responsável pela morte de um amigo.

Surgem muito naturalmente elementos que insinuam a cidade e os personagens presos a uma rotina de caos calmo à beira do abismo social. No meio de uma sequência, de forma orgânica ao texto central, ocorrem pequenas digressões, histórias que de formas múltiplas se conectam ao tema central - a falência das relações e gente que quer superar a concorrência de forma quase sempre desleal. Um livro que chega através da ficção nos problemas não só da cidade grande, relatando o elevado nível neurótico de competição do tipo cão mata cão, mas também sobre como as pessoas desse universo tentam manter a sanidade, coisas que acabam em silêncio.

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