domingo, 7 de agosto de 2011

Sobre o luto e as mulheres euclidianas

Hugo Viana



Nos textos do escritor húngaro Péter Esterházy, a condição da arte como expressão pessoal surge naturalmente em publicações em que o autor não parece preocupado em optar entre ficção ou biografia. O segundo livro de Esterházy no Brasil (o primeiro foi "Uma Mulher"), lançado em julho, durante a Flip, se chama "Os Verbos Auxiliares do Coração" (Cosac Naify, R$ 35), uma história um tanto inventada, mas criada a partir do sentimento bastante real e duro da perda da mãe, que morreu no começo dos anos 1980, época em que o livro foi escrito. A capa é uma fotografia de um ambiente, coberta quase inteiramente por um grande retângulo preto, imagem que sugere o luto, a memória que persiste mas não é a mesma, a lembrança de um tempo passado obstruída pela perda. O livro tem 72 páginas, contendo textos que embora juntos formem uma narrativa única, parecem ter certa independência, ou talvez autonomia, um pouco como pequenos contos com identidade própria. Neles, Péter é autêntico numa espécie particular de ironia confessional, escreve frases que parecem surgir da urgência, da necessidade intransferível de anotar rapidamente as palavras fúnebres antes que elas percam o sentido. Em entrevista por e-mail (originalmente em alemão), Péter comenta o espanto diante do luto, a insolência consciente como resistência sensível daqueles sem perspectiva e o benefício do humor inesperado.

Seus dois livros lançados no Brasil possuem uma conexão de ordem sentimental, por tratarem de tipos de afetos, grandes temas universais. O que atrai o senhor na ideia de abordar amor, família e perda através da literatura?
Eu não tenho considerações teóricas. Posso comentar apenas que interessa-me o que acontece comigo. Simplesmente experiências. E claro as palavras. Eu tento construir ou traçar uma ponte entre ambos - a isso denominamos literatura.

Nesses livros há algo de biográfico, no sentido de sua história pessoal aparecer, ao menos em parte, nos textos? É possível afirmar, durante a escrita, onde a ficção e a autobiografia se aproximam ou se afastam?
Há sempre uma distância entre ficção e não-ficção. Para mim essa distância é: zero. Não tem sentido fazer essa distinção. Quando digo "eu", não estou sendo necessariamente autobiográfico, apenas escolhi uma forma. Mas nesse caso é muito mais fácil porque minha mãe morreu, então sem esse fato não seria um livro. O aspecto físico é uma grande experiência para mim. Sem essa vivência pessoal o livro 'Uma Mulher' não teria sido escrito.

A sua formação foi em matemática, ciência que podemos pensar como objetiva, ou talvez lógica. Como se deu a transição para a literatura, e como esse primeiro momento influenciou (ou influencia) sua produção?
Não houve transição, eu sempre fui um escritor que apenas estudou matemática. Mas aprendi muito com esse estudo acadêmico, sobre formas, abstração e história da ciência. Escrevi uma peça de teatro com o seguinte título: "Rubens e as Mulheres Não-Euclidianas". Sem os estudos de matemática este seria um título difícil de imaginar. Quer saber o que significa uma mulher não-euclidiana? É complicado, mas tem a ver com triângulos.

O senhor nasceu em 1950, na Hungria, então viveu momentos importantes da história política do leste europeu. Gostaria que comentasse como essa história é reprocessada na sua escrita, e se há interesse em debater temas políticos através da literatura.
Em uma ditadura, para sobreviver, deve-se ter muita disciplina. Eu acho que esta disciplina espiritual é bem perceptível na minha escrita. Na ditadura, em que as questões políticas não são respondíveis, a literatura as responde. Mas depois essa relação direta com a ditadura se foi, porque a literatura é mais lenta. As questões políticas devem ser respondidas pelo leitor e não pelo escritor. Um escritor é também, naturalmente, um leitor.

"Verbos Auxiliares do Coração" tem 72 páginas, e embora formem uma narrativa única, elas também são como pequenos contos. Era em alguma medida um interesse investigar formas criativas de narração?
Nunca é bom quando você quer ser criativo e também não é bom quando você não é criativo.

O livro parte de um interesse de falar sobre sua mãe, uma vontade de "se entregar ao trabalho antes que a necessidade demasiado ardente de falar sobre ela recue para o mutismo covarde". Gostaria que o senhor falasse sobre a escrita como um meio para abordar perdas reais.
Eu não vejo a escrita como uma ferramenta de ajuda. Ela não é uma aspirina. A escrita é mais como um predador. Através das minhas perdas pessoais uso as palavras para tentar falar sobre algo mais geral, para também comentar sobre a perda dos leitores. Minha literatura me é roubada assim que ela surge.

Em cada página há trechos de outros livros, sem uma nota explicativa sobre a origem desses textos. Gostaria de saber o que motivou essa escolha, querer aproximar seu texto de outros trechos, de cânones da literatura mundial.
Através desses textos, que permanecem como um corpos estranhos que acompanham o texto original, crio leves e finas fissuras que surgem no texto, arrepios, tremores. E esse efeito é muito importante para mim, essa incerteza. Mas esse é um processo natural, muitas frases nadam em nós, sejam elas peculiares, estranhas, pertencentes, encontradas, ou mesmo criadas.

Senti em alguns momentos do livro um tipo peculiar e certamente inesperado de humor (inesperado talvez diante do tema central, digamos, mais solene, a morte da mãe). Penso na arte do leste europeu, e, sem querer generalizar, mas lembro não apenas escritores, como Kafka, mas também cineastas, tchecos, húngaros e poloneses, como Milos Forman, Jirí Menzel, Juraj Herz, Wojciech Has, que nos anos 1960 e 1970 faziam filmes pessoais, políticos, sentimentais e críticos sobre a história, artistas que mesmo nas situações mais graves criavam um tipo de humor. Eles de alguma forma foram inspirações para seu uso do humor?
Os filmes tchecos dos anos 1960, 70 são referências muito próximas a mim - o modo como lidam com o trágico e o cômico. Desse modo, estando muito próximos uns dos outros, nós ainda rimos, mas deveríamos chorar e, então, nós rimos sobre o que nós choramos. Algo assim. A ironia só é legítima com auto-ironia.

O livro foi publicado em Budapeste em 1985. Você chegou a ler novamente, agora, com o distanciamento de 26 anos? E, por se tratar de um tema tão claramente íntimo, é em alguma medida “incômodo” reler esse livro?
Resposta curta: não. Uma pouco mais longa: sobre a morte da minha mãe eu posso chorar sem ler "Os Verbos Auxiliares do Coração". Eu posso chorar sempre, isso permanece. Então, mais tarde, meus filhos irão chorar. Eu acho isso mais alegre do que triste.

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