segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Histórias de política e detetives

Hugo Viana



Os primeiros livros de escritores que se tornam grandes durante a progressão da história da literatura em geral ganham a importância de objetos de estudo, fontes de pesquisa, textos que quando acessados anos depois revelam uma espécie de arqueologia pessoal da evolução da escrita.

Os indícios iniciais do futuro estilo que tornaria o chileno Roberto Bolaño reconhecido está disponível no livro "Monsieur Pain" (Companhia das Letras, 144 páginas, R$ 34), "escrito em 1981 ou 1982" (imprecisão do próprio Bolaño, na introdução do livro), lançado apenas agora no Brasil.

Bolaño é normalmente associado a um estado de suspense, um clima turvo de investigação política que permanece sem respostas. Em seus livros mais conhecidos no Brasil, "Estrela Distante" e "2666", o autor recorre na superfície ao gênero policial, a narrativas de investigação criminal como forma de se aproximar de seus temas pessoais, o interesse pelo estudo de ditaduras na América Latina, os sistemas de dominação, a desilusão com a esquerda e a falência dos homens de pensamentos liberais, além da própria literatura, o papel da criação artística durante a tensão social.

A história de "Monsieur Pain" se passa em 1938, na França, e fala sobre Pierre Pain, praticante da medicina alternativa, convocado apressadamente para solucionar uma insistente crise de soluço que atacou o poeta peruano Vallejo. Depois de conversar com a mulher da vítima dessa praga inesperada e em geral não levada muito a sério, Pain passa a ser seguido silenciosamente por dois homens sinistros, usando sobretudos escuros e chapéus de aba larga, talvez a imagem síntese do gênero policial.

A certa altura eles o abordam e lhe oferecem suborno, dinheiro destinado a convencer Pain a não cuidar da saúde de Vallejo. Pain aceita e depois seus dias se dividem entre a vertigem de encontrar soluções para algo que aparentemente não possui mistérios de nenhuma natureza e a culpa que o assombra por um passado obscuro nunca inteiramente revelado.

A escrita de Bolaño remete de alguma forma a uma noite brumosa, a um homem encostado numa parede, outro escondido em fumaças de cigarro, sendo observado, movimentos que são simples e adquirem sinuosidade inesperada pela descrição irônica. Durante sua crise moral, Pain passa a vagar geralmente bêbado por ruas apertadas, bares vagabundos, quartos mofados, encontrando personagens ambíguos, que em silêncio quase sempre sugerem a possível ilusão de raiva ou angústia.

Essa história que muitas vezes se confunde com um pesadelo ou uma descida informal ao inferno da solidão parece naturalmente narrada no tom policial, no ritmo da investigação de um crime que nunca sabemos a real natureza. A descrição de um fato normal como alguém descendo as escadas ou entrando num táxi é modulada para o gênero suspense de detetive, como se um segredo terrível estivesse à espreita e pudesse atacar. A escrita de Bolaño é então a de um predador, carregada de um certo lirismo pertencente ao estado de mistério e confusão emocional, e embora em alguns momentos pareça irregular ou longa demais para um fato qualquer, acessos loucos de estilo, sugere uma personalidade forte de escritor virtuoso.

Bolaño conseguiu em alguns livros ser especialmente hábil na capacidade de sugerir inquietações políticas em tramas vestidas de literatura de gênero policial, e em "Mounsieur Pain" essa ideia parece especialmente ativa.

O crescimento desmedido do fascismo, a força devastadora do nazismo, o resultado desolador da Guerra Civil da Espanha (1936-1939) e o domínio do regime franquista sequente, eis os temas que surgem sem qualquer aviso ou exaltação, apenas no subterrâneo da história, com personagens que possuem um direcionamento politicamente conservador ou abertamente adeptos de ditaduras, sugerindo um estado permanente de mal-estar. O livro termina sem nenhuma resposta ou interesse em revelar seu real valor, e isso parece a conclusão ideal para um escritor que sempre preza pelo horror da dúvida.

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