quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A memória inventada de Julián Fuks

Hugo Viana



Durante a nona edição do festival A Letra e a Voz, que começa neste domingo, participam autores que escrevem naturalmente ou forçosamente sobre o tema do evento, a memória, real ou inventada. Um deles é Julián Fuks, autor do livro "Histórias de Literatura e Cegueira", lançado pela Record, em 2007. O livro é um ensaio ficcional que revisa os códigos do gênero biografia, falando sobre Jorge Luis Borges, João Cabral de Melo Neto e James Joyce de uma forma pouco convencional. São textos que não seguem as regras naturais do que normalmente esperamos encontrar em biografias: não são relatos autenticados sobre esses escritores, descrevendo instantes decisivos ou grandes curiosidades, mas pontuações baseadas na observação pessoal, argumentos que nem sempre podem ser comprovados por documentos oficiais. A biografia parece então o caminho escolhido por Fuks para investigar sua própria memória, arroubos de imaginação que partem da sua estante pessoal. Em entrevista por e-mail, o autor falou sobre sua relação com a escrita e seu fascínio pela literatura.

O tema do festival é a literatura e a memória. Gostaria que você comentasse a importância da memória em seu processo de escrita, se é algo que você preza desde o começo ou surge naturalmente enquanto você produz.
Sou um sujeito pouco imaginoso. Se não fosse pela infinitude da memória, própria ou alheia, minha escrita se resumiria a umas poucas frases insossas. Compartilho da máxima de James Joyce de que a imaginação é sempre uma construção enigmática calcada na memória. É claro que da mesma máxima se depreende seu inverso: toda memória é inventada. Meus livros habitam no âmago desse paradoxo. Em "Histórias de Literatura e Cegueira" preferi me valer da memória de outros autores, a partir da materialidade de suas obras tentei retraçar seus passos incertos. No livro que lanço este ano, "Procura do Romance", tomo como ponto de partida minha própria história, apenas para constatar como são inalcançáveis, como resultam sempre distorcidas e instáveis.

Seu livro "Histórias de Literatura e Cegueira" aborda essencialmente três autores, Borges, João Cabral e Joyce. Por que esse recorte? O que eles significam para você, e onde você pretendia chegar com esse projeto?
Há sempre uma arbitrariedade na definição de uma obra, fruto de escolhas intuitivas, que só mais tarde encontramos uma resposta. Para responder a essa pergunta só posso remeter a minha história de leitura desses autores. Borges foi o primeiro que conheci, e logo sua cegueira exerceu um estranho fascínio sobre mim. Lendo as obras dele, apreciando aquela sintaxe elaborada e a complexidade dos pensamentos, sempre me perguntava como ele conseguia, sem acessar o texto com seus próprios olhos, engendrar aqueles ensaios tão eruditos. Mas só me ocorreu que se tratava de um tema para livro quando me deparei com uma estranha foto de João Cabral, abatido e de ombros caídos, sentado numa cadeira avulsa no meio da sala, com os olhos cegos e melancólicos fitando o vazio. O contraste da imagem sobranceira que eu tinha do Borges cego com a desse João Cabral deprimido que antecipava a própria morte foi a tensão que deu origem ao livro. Mas eu não queria que se tornasse uma comparação injusta entre um Borges vitorioso, bem-sucedido, e um João Cabral fracassado. Por isso, fui atrás de um terceiro escritor cego, dispensei Homero, depois John Milton, Camilo Castelo Branco, John Fante, até chegar a Joyce, que me pareceu perfeito.

E o que você poderia comentar sobre a opção de ficcionalizar instantes nas vidas desses autores?
Meu objetivo sempre foi fazer um retrato de cada um dos autores, um retrato que não se limitasse ao que houvesse de efêmero em suas biografias, que não deixasse as obras em segundo plano, que se valesse da cegueira como ponto de imersão nesses universos. Para esses retratos, a fidelidade ao que estava documentado não interessava. Quando falhava o que se costuma chamar de real, convinha recorrer ao provável. Se faltava o provável, valia-me o possível. Quando, por fim, não era possível achar o possível, tinha que recorrer ao verossímil, e assim, distraidamente, acabei me imiscuindo ao campo da ficção.

Na primeira frase do livro, você escreve: "Histórias devem ser contadas". Gostaria que você falasse um pouco sobre a relação entre obra e leitor, o contato entre um texto e a pessoa que o resignifica.
Devo dizer que me arrependi um pouco dessa frase, ou ao menos que ela já não sustenta a verdade que eu supunha nela, que ela trai o escritor que sou hoje. Já não acredito tanto no poder redentor das histórias, em sua onipotência. Depois que a escrevi, nunca mais as histórias me saíram fáceis, foram sempre uma busca instável. Mas você me pergunta sobre uma relação entre obra e leitor, e decerto essa relação está marcada pela mesma ambiguidade. Creio que já não é tempo de buscar a obra que encante, que embale o leitor em uma narrativa agradável; muito mais interessante é a obra que o confronta, que lhe provoca um estranhamento, que o desloca de sua posição confortável.

Seu "prólogo necessário" defende a ideia que a literatura deve ser lida, no entanto seu ensaio ficcional fala de três escritores que, embora não tenhamos como avaliar que são "muito lidos", podemos concordar que são certamente nomes incontornáveis na história da literatura, nacional ou não. Você vê algum contraste nessa ideia? Era um interesse do início estabelecer essa relação (discutir a leitura a partir de autores já bastante lidos)?
Eu partia da percepção de que, por mais lidos que fossem esses escritores, suas histórias acabavam fatalmente se perdendo, esvaecendo em páginas esquecidas, se extraviando em livros intocados. Essa proposição me parece cada vez mais válida neste nosso mundo que pouco sabe situar a literatura, que não lhe vê função e tampouco compreende sua disfunção, que a relega a um silêncio apático. Claro que meu livro será igualmente silenciado, permanecerá intocado, se extraviará muito mais rápido do que aqueles que quis salvar, mas a ideia era dar àquelas histórias uma nova existência, alguma sobrevida que os demovesse, ainda que por um átimo, do esquecimento.

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