sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Biografia de um homem bruto

Hugo Viana



Clint Eastwood foi capa da edição de janeiro da revista M, que pertence ao jornal francês Le Monde, para divulgar seu novo filme, "J. Edgar" (EUA, 2012). Na ocasião, fez um pedido um tanto raro entre estrelas veteranas da indústria de cinema: a foto não deveria ser tratada por programas de edição de imagem, e então marcas dos 81 anos deveriam aparecer sem qualquer tipo de intervenção.

É curioso que justamente "J. Edgar" recorra tanto à maquiagem, à reconstrução de um personagem real a partir de artifícios. Leonardo DiCaprio interpreta a trajetória de J. Edgar Hoover, criador e diretor do FBI, de 1935 até 1972, quando ele morreu, aos 77 anos. Em boa parte do filme, DiCaprio e outros atores trabalham com maquiagem pesada, para sugerir o peso solene da idade, em cenas filmadas em penumbra, na biografia de um personagem controverso da história norte-americana.

Em seus filmes recentes, Eastwood parece cada vez mais interessado na passagem do tempo, nas mudanças ocasionadas por décadas. "J. Edgar" se divide em duas narrativas: no "presente", nos anos 1970, Hoover narra suas memórias para agentes do FBI, enquanto no passado acompanhamos as ações nem sempre legais que o levaram ao posto de diretor do FBI. Assim como em "A Troca" (2009), nos flashbacks Eastwood recria com incrível habilidade a atmosfera dos Estados Unidos nos anos 1920 e 30, em especial pela desordem causada pela máfia.

É através dessa estrutura dupla que conhecemos a personalidade polêmica de Hoover, e Eastwood estabelece as características dele em pequenas cenas potentes. Quando Kennedy assume a presidência, durante a carreata, Hoover vai à varanda de seu apartamento e saúda as pessoas na rua, que sequer o percebem; ou quando, imaginando combater o comunismo, Hoover invade a privacidade de cidadãos e põe em risco uma suposta liberdade.

Hoover é um personagem que mesmo real parece bem sintonizado com as criações anteriores de Eastwood; o homem de ações duras que não costuma se expressar, e em seu silêncio guarda rancor do passado. Assim como os personagens interpretados pelo diretor em "Gran Torino" (2009) e "Os Imperdoáveis" (1992), Hoover é descrito como turrão que esconde sentimento atrás de muralha fortificada.

O sentimentalismo do filme, que em algumas cenas é bastante alto, vem em grande parte de um aspecto sempre comentado da vida pessoal de Hoover. Bastante conservador, existia a suspeita de que ele e Clyde Tolson (Armie Hammer), agente que Hoover rapidamente promoveu a um cargo na direção, eram amantes. Por décadas os dois eram vistos juntos em eventos sociais e durante as férias, e essa proximidade iniciou rumores sobre a natureza da relação entre os dois.

Pode talvez surpreender o espectador acostumado ao cinema do tipo bruto de Eastwood perceber a sensibilidade do realizador para falar de um homem sexualmente confuso, mas é quando essa parte da trama é desenvolvida que os personagens rapidamente ganham ternura e complexidade.

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