sábado, 14 de janeiro de 2012

Estranho encontro num dia quente

Hugo Viana



Há uma unidade nos trabalhos do escritor e desenhista Lourenço Mutarelli, uma marca de estilo em geral obscura, como se em cada projeto existisse a presença alegórica de um calabouço em pleno dia de sol, e seus personagens fossem levados à força até lá e modificados emocionalmente com a experiência. Sua nova obra tem o ótimo título "Quando Meu Pai se Encontrou com o ET Fazia um Dia Quente" (Companhia das Letras, R$ 44,50, 112 páginas), crônica em que uma medida de normalidade é modificada por algo espetacular. Depois da morte da mulher, o pai de um narrador sem nome encontra um ET num dia quente, e esse possível rumor se transforma nos desenhos de Mutarelli, evolui para uma misteriosa história sobre a lembrança distante de um passado vagamente familiar e a sensação de que algo permanece em segredo. Nesta entrevista, o autor explica, com um tipo peculiar de humor, motivações para a criação da história e ideias para o desenvolvimento da narrativa.

Você começou a produzir HQs nos anos 1980 e voltou agora, num outro momento do mercado editorial do Brasil. Gostaria que você falasse sobre as diferenças nesses dois períodos.
A grande diferença dos anos 1980 para cá é que quase não existem mais quadrinhos em banca de revista. Acho que é o que eu mais estranho e sinto falta. Não tenho acompanhado muito o que tem saído, mas tem essa forte tendência dos álbuns autobiográficos ou nessa linha. Sinto falta da fantasia ou da diversidade que era possível encontrar nas revistas. Mas se hoje tivessem revistas em banca eu também não estaria lendo.

Seu trabalho recente com literatura parece ter uma relação, às vezes discreta, com a narrativa em HQ: frases curtas, e, em especial em "Nada me Faltará" (2010), uso exclusivo do diálogo. Como é a correspondência entre livro e HQ?
Quando estou escrevendo um livro não vejo relação com quadrinho, desde a ideia inicial o pensamento é outro. Minha estrada pelos quadrinhos influenciou muito o meu olhar e a minha forma de narrar uma história. "Nada me Faltará" foi pensado como se com os balões de uma HQ. Da mesma forma que esse 'Quando Meu Pai...'. Eu acho que a literatura que venho praticando se refletiu nesse quadrinho. Tudo que eu faço acabo somando na minha obra, independente da forma que for contada.

Sempre que leio um trabalho seu percebo nos personagens uma espécie de brutalidade interior que vai crescendo, até que perto do final costuma explodir, mas neste notei um tom menor, talvez mais íntimo ou delicado. Você comentaria alguma motivação diferente nesta HQ?
Eu queria uma historia simples e que tivesse certa delicadeza. Eu estava buscando uma outra coisa. Nesse álbum a ideia nasceu de uma piada que o (escritor) Marçal Aquino me contou sobre um ET que não tem nada a ver com a história que eu desenvolvi, mas que trazia um clichê das historias de ET: a frase "Leve-me ao seu líder". Essa frase ficou ecoando da minha cabeça e eu não saberia a quem eu levaria o ET caso ele me pedisse isso. Foi daí que surgiu a história, foi daí que desenvolvi o argumento.

Ao mesmo tempo, assim como outros projetos, há uma medida de normalidade do cotidiano transfigurada por algo espetacular, algo que de certa forma está expresso no título (a relação entre encontrar um ET e a notificação de "um dia quente"). Em que aspectos esse novo trabalho continua questões suas?
A única coisa que tem de autoral nesse livro é que eu usei algumas fotos da minha infância, são referências puramente imagéticas. Como o livro é narrado em primeira pessoa por um personagem que não tem nome e não aparece dá a impressão que sou eu quem está contando.

Gostaria que você falasse sobre a relação entre palavra e imagem neste trabalho. Aos poucos vamos percebendo que os textos antecipam as imagens, e essa falta de sincronia parece representar uma memória fora de ritmo, um deslocamento das lembranças, talvez a sugestão de fabulações do narrador.
Como é uma história sobre a memória, e o personagem principal está contando algo que ele não vivenciou e que aconteceu dez anos antes, pensei em brincar com a ideia da arte sequencial. A memória é uma ficção e em nenhum momento eu queria que a imagem estivesse ilustrando o texto. Queria representar esse processo mental do personagem.

Houve alguma influência do cinema neste novo trabalho? Cada página é um único quadro, e é possível perceber um elevado grau de rebuscamento na construção das imagens, cada uma funcionando quase como uma tela autônoma.
Realmente eu pensava numa tela, pensava em apresentar o texto quase como uma legenda. Gosto de um conceito de William Burroughs, a 'tela mental': o espaço onde projetamos e vemos nossas lembranças.

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