segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Os fragmentos de um personagem

Hugo Viana



Alguns personagens parecem ocupar o ócio criativo do respectivo autor, permanecendo na memória mesmo depois que suas histórias ficcionais foram publicadas em livro, insistindo em aparecer em novas narrativas. O escritor Cristovão Tezza, vencedor dos prêmios Telecom, São Paulo e Jabuti, lança o livro "Beatriz" (Rercord, R$ 34,90, 144 páginas), composto por sete contos sobre a personagem do título, que já havia surgido em algumas pequenas histórias e no romance anterior do autor, "Um Erro Emocional" (2010). Tezza volta à Beatriz propondo uma investigação fragmentada em histórias curtas, uma pesquisa sentimental que examina afetos ocasionalmente sombrios que assaltam o cotidiano desta mulher de 28 anos, uma revisora de textos que rabiscou de seu passado um marido infiel e umas tantas boas oportunidades de emprego. "Eu não sabia bem quem era Beatriz", diz Tezza, em entrevista por e-mail. "Ela foi construída em degraus." Outro personagem que também volta é o escritor Paulo Donetti, ranzinza absoluto que cometeu um erro emocional ao se apaixonar por Beatriz. Nesta entrevista, Tezza comenta a relação com seus personagens e explica como foi voltar a escrever um livro de contos.

Gostaria que você falasse sobre as circunstâncias da criação desses dois personagens, Paulo Donetti e Beatriz. Eles parecem resultado de muita reflexão e trabalho.
Reflexão teórica ou formal, talvez não; sou um escritor bastante intuitivo. Mas trabalho, com certeza. Em cada texto ficcional, o personagem parece que se desdobra, revela outros pontos e traços, que eu acabo levando para o texto seguinte. A personagem Beatriz foi construída em degraus. Eu não sabia bem quem era ela. Já o Paulo Donetti está quase que inteiro no primeiro conto, em estado bruto. Os textos subsequentes, incluindo o romance "Um Erro Emocional", apenas revelam o que ele já havia mostrado em potencial. Mas é engraçado que ele quase que se suaviza no romance, que, por dar mais tempo, acaba criando nuances que estavam ausentes no conto de sua criação.

Com exceção de "Amor e Conveniência" e "O Homem Tatuado", os outros cinco contos de "Beatriz" já tinham sido publicados em antologias, sites e revistas. Como foi a organização do livro, no sentido de criar textos novos e adaptar narrativas antigas a um ponto comum, Beatriz?
Quando me deu o estalo de compor um livro de contos com os dois mesmos personagens, percebi que isso já era o que eu vinha fazendo sem saber, ao insistir na Beatriz e ao repetir Donetti em "A Viagem". "Amor e Conveniência" era um conto que só por acidente estava na gaveta, por falta de uma oportunidade de publicação. O único texto que de fato foi escrito para o livro, já tendo todo o conjunto em perspectiva, foi "O Homem Tatuado". Ao preparar a coletânea, tive apenas o trabalho de lapidar arestas, para marcar uma certa continuidade.

Neste livro há a sensação que alguns personagens (em especial do conto "O Homem Tatuado") também renderiam novas jornadas, histórias que parecem não se esgotar. Há interesse de continuar com algum deles? Há algo particularmente positivo ou negativo nesse fascínio que certas criações podem exercer sobre os autores?
Bem, cada caso é um caso; não há rigorosamente dois escritores semelhantes em seus métodos. A permanência de alguns personagens em livros diferentes é uma tentação que de vez em quando me bate. "O Fantasma da Infância" foi escrito com personagens de "Juliano Pavollini", embora os livros sejam completamente dessemelhantes. Sinto uma atração por este jogo. Talvez por eu ter sido um leitor apaixonado de Balzac e de Faulkner, que inventaram cidades paralelas às cidades reais.

Embora a tentação imediata seja entender Paulo Donetti como um tipo de alter-ego seu, ele na verdade parece ser uma forma de sintetizar alguns posicionamentos sobre o meio literário em geral, fabulações que não representam necessariamente seu ponto de vista sobre festivais, escritores, editores, além da proposta vida/literatura, real/criação. Gostaria que você falasse sobre Donetti, sobre as possibilidades narrativas que surgem ao ter um escritor como personagem.
Obviamente Donetti não é meu alter-ego; quem me conhece sabe que estou a quilômetros de distância daquele mau humor e daquela agressividade; também não sou um depressivo e (acho) nunca fui tocado pelo ressentimento - pois todas essas "desqualidades" parecem definir Paulo Donetti, o que me divertiu. E também me dá liberdade: muitas vezes Donetti fala exatamente o que penso, o que acontece muito na vida real: às vezes alguém com quem você não concorda em nada diz alguma coisa que você assinaria embaixo. O conto "Beatriz e o Escritor" revela um Donetti próximo da caricatura, do traço rápido e definidor, sem nuances, o que é frequente no gênero do conto. Mas ele ganha outra complexidade no romance. Um outro aspecto é que o personagem escritor é bastante frequente nos meus livros; é uma espécie de investigação paralela, mas sempre ficcional, sobre o que significa o ato de escrever.

Tanto "Um Erro Emocional" quanto alguns contos de "Beatriz" (penso em "Amor e Conveniência") tratam de uma noite em que os personagens não falam o que sentem, reproduzem ações mecânicas (ir ao restaurante, comer uma pizza, abrir uma garrafa de vinho), embora estejam em ritmo frenético de pensamentos. Gostaria de saber sobre essa estrutura narrativa, a pouca mobilidade em termos de história em oposição a um complexo movimento interno.
Costumo definir a mim mesmo como um escritor adepto do "realismo reflexivo"; o desafio é você fazer desta reflexão, muitas vezes abstrata dos personagens sobre as pessoas, as coisas e o mundo, uma ficção que não perca de vista a intensidade narrativa. Em "Um Erro Emocional" eles quase não se movem, mas a memória de cada um viaja sem parar. Há um sem-número de micro-histórias que vão se encaixando na lentidão do texto maior. Do ponto de vista da linguagem, essa estrutura acabou por amadurecer uma sintaxe muito particular que venho desenvolvendo desde "Breve Espaço Entre Cor e Sombra".

Até hoje você escreveu apenas um livro de contos, e agora o segundo. Além das diferenças básicas de tamanho e estrutura, o que você comentaria sobre "Beatriz"? O livro parece funcionar bem aprofundando a personagem a partir de fragmentos.
Sim, é bem possível que eu volte a publicar um livro de contos. Não sei bem o que dizer sobre o livro, apenas que Beatriz continua viva na minha cabeça. Estou com três novos contos em perspectiva. Não escrevi ainda nenhuma linha deles, mas já anotei os títulos num rascunho. Mas vão demorar. Acabo de entregar um livro novo para a editora - "O Espírito da Prosa" -, uma reflexão sobre o romance que deve sair no segundo semestre, e até lá quero descansar um pouco.

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