segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Os limites entre ficção e biografia

Hugo Viana



Em seu novo livro, "Procura do Romance" (Record, R$ 32,90, 144 páginas), Julián Fuks continua uma investigação presente em sua obra anterior ("Histórias de literatura e cegueira"): a literatura não apenas como base para a criação, mas também como medida de segurança que separa a região imprecisa entre biografia e ficção. O protagonista é Sebastián, um escritor que viaja à Argentina em busca de inspiração, uma procura que parece constantemente perguntar: há história? Por que escrever? Enquanto Sebastián transita por uma Buenos Aires vagamente familiar, recordando lentamente os rastros de sua família, um narrador atravessa os vínculos criados com o leitor, tornando explícitos os métodos de ficção e a própria biografia de Fuks, ele também morador da Argentina no passado e em processo de escrita de um romance. Nesta entrevista, Fuks comenta as camadas do livro e sua teoria literária pessoal.

Gostaria de saber sobre as origens de sua relação com a literatura, os primeiros livros que causaram fascínio, os autores.
O escritor sempre ficcionaliza ao responder a esse tipo de pergunta, inventa origens mais pertinentes, cria relações e sentidos onde não existiam. Eu confesso que não sei bem como foi que acabei enveredando para a literatura. Não fui um desses leitores precoces que, aos dez ou doze anos, desvenda com avidez as páginas de Cervantes, de Dumas, ou de quem seja. Lia minha cota de livros infantis e juvenis e, embora guarde boas lembranças de algumas dessas leituras, creio que nenhuma delas me marcou definitivamente ou me fez decidir que mais tarde escreveria minhas próprias histórias. Acho que a literatura foi decorrência de algumas decisões posteriores, e da percepção de que talvez eu me saísse bem no ofício, de que eu podia ter algo a dizer.

Na literatura nacional, você se enquadra no rótulo "jovem escritor". O que comentaria sobre esse perfil? Como é a rotina de quem vive de literatura e aspectos próximos (crítica literária, tradução, palestras, oficinas)?
Não me incomoda ser tachado de jovem escritor, desde que não se espere a partir disso uma postura específica, uma visão de mundo, uma literatura de certo tipo supostamente própria aos meus colegas de geração. Acho que o rótulo pode servir como estímulo às liberdades, como convite à inovação, já que em certa concepção caberia ao jovem abrir novos caminhos - mas também não convém acreditar muito nisso, tanto conservadorismo há entre os mais jovens. Mas de fato se criou algo interessante na cultura brasileira recente, na medida em que se pode viver de literatura sem chegar a vender muitos livros, ganhando o sustento com traduções, bolsas de incentivo, eventos, textos ocasionais.

Assim como seu livro anterior, mas em medida diferente, "Procura do Romance" tem a própria literatura como material base para a criação. É um interesse particular escrever ficções que tratem da literatura? O que atrai nessa busca?
Por não ter outra profissão, por levar a vida em atividades sempre correlatas à literatura, acabam ganhando proeminência em mim suas questões mais específicas, seus bastidores, seus mecanismos internos. A literatura se tornou problemática em nosso tempo, perdeu seu lugar cativo, e assim se passou a ser quase impossível exercê-la sem ponderar seu alcance tão restrito, sem considerar seus diversos limites.

O protagonista do livro é Sebastián, um jovem escritor que viaja à Argentina para escrever. Em que medida este é um livro autobiográfico? Sei que você morou na Argentina, e seu próprio nome, Julián, remete ao do protagonista...
Há elementos autobiográficos: a nacionalidade um tanto ambivalente do personagem, sua condição de filho de exilados, os episódios de sua infância que são inspirados em ocorrências reais da minha. Mas não tive nenhuma intenção de produzir uma autobiografia. O que fiz foi me valer de todos os aspectos que julguei pertinentes para a história, das situações que surgiam em minha memória e me instigavam a escrever. Não é a imaginação ou qualquer fantasia o que me leva a escrever: como tantos, escrevo porque observo algo no mundo.

Gostaria que você falasse sobre as possibilidades narrativas que surgem ao ter um escritor como personagem, e o quanto de questões pessoais você colocou no enredo.
Ao criar um personagem que era quase um decalque meu, eu podia lhe emprestar uns quantos pensamentos, algumas indagações pessoais, um certo olhar crítico que me interessa verter sobre as coisas. Mas é claro que a construção do protagonista segue as consabidas normas da criação ficcional, dando-se por meio de uma intensificação: tentei extrapolar o que me é próprio, a fim de levá-lo às suas consequências últimas, para que se tornasse algo mais expressivo.

O livro trata de um autor num momento de transição. Ele volta à Argentina, onde morou quando criança. Há uma sensação de "volta à infância" no livro. Em que medida essa investigação foi um recurso para o romance?
Sim, trata-se de uma tentativa de volta à infância, mas uma tentativa fadada ao fracasso. Porque Sebastián tem consciência da imprecisão de toda memória, de como o ato de lembrar e o ato de inventar são feitos da mesma matéria. Ele quer regressar à infância porque pensa que naquela época mais sofrida podia haver algo de mais relevante, de mais pertinente. Sabe, no entanto, que os momentos pretéritos também estão sujeitos à mesma irrelevância e à mesma impertinência de qualquer ímpeto literário do presente.

O livro parece ao mesmo tempo um romance que documenta, através da ficção, um processo de escrita, e defende um tipo de teoria literária que aparentemente o fundamenta. Gostaria que você falasse sobre essa estrutura dupla: um livro sobre a escrita de um livro e também um livro que descreve uma teoria, que revela os pensamentos de um autor.
Essa parece uma condição incontornável da literatura de nosso tempo: ter que justificar a que veio, ter que explicar por que ainda existe se tão poucos a desejam, se dispõe de tão pouco espaço neste mundo em que ela teima em se repetir. Acho importante que os livros comportem, de forma menos ou mais explícita, a teoria própria que os sustenta: não gosto da literatura arbitrária que se quer soberana, que ignora as vicissitudes da época em que se insere. Só assim, compreendendo-se, criticando-se, a literatura pode recuperar algo do alcance que teve em outro tempo.

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