quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

História familiar marcada por sangue

Hugo Viana



Não é incomum a literatura recorrer ao sangue como um artifício para falar sobre outros aspectos da vida, uma metáfora mais ou menos versátil para fins tão diversos quanto o vício de seres mitológicos ou a união familiar. É nesse segundo tópico que se encaixa o novo livro do escritor Yu Hua, "Crônica de um Vendedor de Sangue" (Companhia das Letras, 272 páginas, R$ 41), autor chinês de maior alcance mundial, dos livros "Viver" (2008) e "Irmãos" (2010), também lançados pela Companhia das Letras.

A história se passa nos anos 1950. O protagonista é Xu Sanguan, operário de uma fábrica de seda, homem regido por um certo sentido de tradição, em especial pela noção de família como reduto de segurança. Sanguan gosta de duas mulheres, Lin Fenfang e Xu Yulan, acaba ficando com a segunda, uma jovem honesta em busca de mimos, e eles formam uma família com três filhos. No papel do provedor da família, Sanguan adquire o dinheiro necessário vendendo seu sangue para um hospital decadente, e com isso consegue manter certo grau de satisfação financeira.

Esse é um detalhe histórico autêntico, fato que nos anos 1950 levou chineses à morte, por métodos nem sempre adequados de extração, ausência de qualquer medida de higiene, mas ao mesmo tempo comum, por render "o equivalente a meses de trabalho na fábrica".

O livro tem então uma certa conotação política, em especial por tratar abertamente de um problema autêntico, a venda de ilegal de sangue, mas essa leitura aos poucos parece um interesse menor e inteiramente subjugado ao drama dos personagens, em parte pela grande habilidade de Hua para construir personalidades, dar a eles uma camada extra de humanidade.

Não há um enredo no sentido tradicional; acompanhamos vários anos da família Xu, alguns altos e em geral muitos baixos, pequenas situações fragmentadas que tratam da dificuldade de permanecer unido quando tantas decepções se acumulam. O que parece tirar o peso melodramático da história, que envolve traições e brigas no meio da rua observadas por vizinhos, é a própria escrita de Hua, um humor discreto, uma forma de relatar o desastre como uma delicada comédia da vida privada.

O texto de Yu Hua é inicialmente um relato quase documental sobre o cotidiano chinês, mas aos poucos essa prosa vai se modificando, tornando-se um incrível panorama emocional de uma família durante décadas; um drama que coloca os personagens à frente da história, localiza a família como meio de sobrevivência, e ao fim parece impossível não se admirar com fraquezas ou sucessos de cada um deles.

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