sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Herói sem contradição


Hugo Viana


Biografia é um tipo traiçoeiro de cinema: gera curiosidade por informar aspectos autênticos da intimidade de alguém historicamente relevante ao mesmo tempo em que necessita, por motivos de duração ou ideologia, deformar certas características da personalidade do biografado. "Lincoln", filme de Steven Spielberg sobre o presidente norte-americano (1809-1865), parece sofrer com esses dois problemas. 

O filme apresenta Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis) como herói virtuoso adepto da ideia "os fins justificam os meios". Na história, que se passa em 1865, Lincoln está começando o segundo mandato, com elevado apoio popular, e tenta encerrar a Guerra Civil entre o Norte e o Sul. Ao mesmo tempo o presidente insiste, apesar de ser aconselhado a não tocar no assunto, em confirmar a 13ª emenda, que acabaria com a escravidão. 

A história então se divide entre muita burocracia política, narrando o fim da guerra e da escravidão, e a vida particular de Lincoln, a relação conturbada com a mulher, que o culpa pela morte de um dos filhos, e com o primogênito, que insiste em ir para a guerra por um certo sentido de  patriotismo e vontade de não querer ser poupado por causa de seu berço. Estas histórias familiares ocupam pouco tempo no enredo: a vontade de Spielberg parece ser provar a inteligência política da estratégia para acabar com a escravidão. 

O filme tem carga exagerada de texto, longos diálogos (e monólogos especialmente feitos para insinuar um Lincoln de fala política sedutora) que explicam com detalhes cansativos o contexto dos EUA nos anos 1860. O problema não parece ser o excesso de explicação, o grande volume de informação anunciado a cada cena, mas que todo esclarecimento venha necessariamente através de palavras e quase nunca de imagens, preceito básico do cinema. 

Além dessa preferência por palavras, a predominância do texto sobre a imagem, "Lincoln" tem outro problema, esse mais grave; existe um incômodo ideológico, a sensação de que tudo é resolvido com a imagem da bandeira dos Estados Unidos tremulando imponente acima de qualquer suspeita. 

O próprio Lincoln tem sua dubiedade pouco explorada; atitudes geradas por revolta familiar ou arbitrariedade política são insinuadas, mas logo revertidas para ressaltar a figura de bom humanista. Parece existir um receio de modificar a imagem heroica de Lincoln, sendo um filme detalhista apenas o suficiente para não gerar contradição. Daniel Day-Lewis vem sendo exaustivamente elogiado, novamente cotado para ganhar o Oscar, e de fato sua interpretação possui nuances que sugerem certas dúvidas morais; o problema real parece ser o roteiro, que insiste em transformar história em palco para heroísmo. 

Algo que prende a atenção no filme é a observação do sistema político, uma espécie pré-histórica de lobistas que tentam convencer através de falsas promessas, calúnias ou omissões ocasionais, tudo em completa sintonia com a política contemporânea. É quando o filme deixa momentaneamente o peso solene da tradição e da história e assume uma postura mais relaxada - talvez por isso sejam as melhores cenas.  

A grande aceitação no mercado norte-americano ("Lincoln" é o líder de indicações no Oscar) sugere a suspeita que o filme deve funcionar bem no país de origem especialmente por reforçar, com toque de bom mocismo, o ranço de presidentes supostamente humanistas, personalidades que ao serem representadas no cinema têm complexidade moral na medida do tolerável. 

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