segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Imagens de um futuro distópico


Hugo Viana

A ficção científica é geralmente interpretada como gênero de criação livre, em que aspectos do mundo real são transformados em histórias cujo exagero tecnológico parece conter receios autênticos sobre a maneira como a humanidade se desenvolve. Essa noção de futuro incerto para uma sociedade que rompe limites éticos e morais para avançar no mundo digital está na história em quadrinho "V.I.S.H.N.U.", obra que trabalha com qualidade aspectos do gênero.

A HQ reuniu três autores: Eric Acher, consultor e investidor em empresas de tecnologia, criou um argumento para história em quadrinho baseado nessas inquietações; em seguida, o jornalista e escritor Ronaldo Bressane estruturou a ideia em forma de roteiro, e então o artista e ilustrador Fabio Cobiaco usou a pintura preto e branco para transformar o texto em imagens. O projeto nasceu de uma proposta da editora Companhia das Letras: unir escritores e ilustradores num projeto de arte sequencial único e da RT Features, produtora de Rodrigo Teixeira.

"A ideia surgiu há uns dez anos, depois de ler o livro 'The age of spiritual machines' ['A era de máquinas espirituais'], de Ray Kurzweil, cientista brilhante, defensor da evolução tecnológica. Nessa mesma época, Bill Joy, outro gênio da tecnologia, escreveu um artigo para a revista Wired, 'Why the future doesn't need us' ['Porque o futuro não precisa de nós'], com uma visão bem mais pessimista da capacidade de destruição das novas tecnologias do século 21", explica Eric. "Essas visões contraditórias de dois grandes cientistas me intrigaram. Como fã de ficção científica, pensei em uma história que misturasse as duas: e se num futuro surgisse uma inteligência artificial messiância e 'humanista', que propusesse resolver esse paradoxo das motivações humanas por trás do uso da tecnologia, consertando um suposto 'bug' do cérebro humano?", comenta o autor.

Na história, essa inteligência artificial surge como uma espécie de salvação num período em que a tecnologia se tornou uma ameaça à existência. Ao mesmo tempo, V.I.S.H.N.U. (o nome da inteligência) é tratada com desconfiança: como acreditar em algo com o potencial de gerar caos? Essa espécie de salto de fé é o que move o enredo, uma intrigante história que mistura referências religiosas e políticas ao mesmo tempo em que traz artifícios do thriller policial. "Antigamente a ficção científica era um gênero distante da realidade. Nas últimas décadas, ela se aproximou da realidade. Embora o tema de 'V.I.S.H.N.U.' - o impacto da evolução da tecnologia - seja clássico, o enredo pode surpreender através do elemento místico/religioso", sugere Eric.

O trabalho de narração visual de Fabio Cobiaco é interessante: ao mesmo tempo em que sugere um estilo único, uma representação visual de futuro caótico que mantém ligações com o presente, deixa claro conexões com outros artistas que trabalharam na ficção científica (Moebius é talvez a grande referência). Cobiaco faz desenhos com um tipo sujo de impressionismo, imagens que conseguem através de poucos e bruscos traços sugerir feições (e emoções).

O fascínio do gênero parece estar em imaginar o mundo 100 ou 200 anos depois do agora, criando ficções que parecem captar com precisão as transformações políticas e sociais geradas pelo crescimento na tecnologia. Em "V.I.S.H.N.U.", temos uma história em que a sociedade parece não suportar o nível de evolução na tecnologia - ou talvez a humanidade não acompanhe com o mesmo ritmo esses avanços.

DEPOIMENTOS

Ronaldo Bressane, roteiro

"Quando Eric me contou seu argumento, senti que havia abertura para temas da New Wave da ficção científica - autores como JG Ballard e Philip K Dick, e, de algum modo, William S. Burroughs -, que passam por uma perspectiva mais pop, próxima do cotidiano, bem como a interação sexual entre homem e máquina, a ideia burroughsiana de linguagem como vírus e a filosófica questão da identidade, tema central da FC: até que ponto um objeto tecnológico pode ser dotado de uma alma?"

"Na teoria de Tzvetan Todorov, a ficção científica é uma derivação da literatura fantástica - em que existe uma "hesitação" entre real e fantasia - norteada por questões relacionadas à ciência, tecnologia, futurologia e filosofia. Ou seja, parte de uma premissa "E se...?" e vai embora. Então as possibilidades são infinitas, porque a FC é um pacto entre autor e leitor; se um dos dois questiona demais se o que está sendo contado é possível ou verdadeiro, algo foi malfeito e a brincadeira perde a graça"

"Leio ficção científica desde, sei lá, as histórias do Astronauta, do Mauricio de Sousa, que descobri na infância. Asimov, C. Clarke e Bradbury vieram na adolescência. Philip K Dick, um dos escritores que mais gosto, conheci, como muita gente, depois de ver o filme "Blade Runner". Muito subestimado - como aliás todo o gênero FC (muito por conta de escritores ruins, críticos sem imaginação e leitores que babam na gravata) -, PKD ainda será percebido como um dos maiores autores do século 20"

Fabio Cobiaco, arte

"Na hora de desenhar eu sabia que se apelasse para qualquer truque visual de Moebius, por exemplo, estaria condenado. O mundo da FC é relativamente pequeno, iriam sacar e meu trabalho iria por água à baixo. Desenvolvi alguns conceitos para guiar a arte. Não mudei muita coisa dos dias de hoje, apenas acrescentei um design diferente, mais poluição e objetos voando. Mas basta olhar para o céu em São Paulo para ver que estamos quase lá, ou na arquitetura futurista de Xangai"

"Minha abordagem básica ao encarar uma página é sempre a de uma batalha. Pra mim é um dragão que eu tenho que matar. Posso dizer com certeza, pois trabalho em várias áreas do desenho: quadrinhos é o trabalho mais difícil que existe. O bom autor de quadrinhos tem que dominar várias disciplinas, direção de arte, narrativa, composição, arquitetura, fotografia. É um trabalho árduo, solitário e que requer muito investimento por parte do autor. Não adianta fazer 200 páginas maravilhosas e não terminar as últimas dez"

"Me interessei por ficção científica com animes japoneses que passavam na tv quando eu era garoto. Na adolescência conheci quadrinhos do pernambucano Watson Portela, e, através dele, o trabalho do Moebius, o maior nome da FC. Na literatura Julio Verne e Frank Herbert detonaram minha cabeça. Nos últimos 15 anos tenho estudado a obra do pintor surrealista suíço HR GIGER, que trabalha uma outra vertente da FC, ligada à biologia e a tradições herméticas"

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