quarta-feira, 11 de setembro de 2013

"Só podemos escrever sobre aquilo que nos pertence"

Hugo Viana

Foto: Renata Massetti

Em seu novo livro, "Aos 7 e aos 40", o escritor paulista João Anzanello Carrascoza recorre à memória, aos efeitos do tempo, para observar a constituição emocional de um homem. A narrativa se divide em duas partes, que se alternam: um personagem aos sete anos, uma criança que aos poucos descobre a doce complexidade existencial, e esse mesmo homem, flagrado aos 40, casado e com um filho, num cotidiano oprimido por obrigações que refletem experiências do passado. Ao observar dois pontos extremos, Carrascoza parece sugerir como nuances da rotina moldam o caráter, a maneira como a soma de amores, desafios e frustrações, com os anos, formam uma personalidade. Neste seu primeiro romance - escrito depois livros de contos e narrativas infanto-juvenis -, o autor parece aproveitar o conhecimento textual adquirido com narrativas curtas para transformar a história num testemunho poético sobre a existência. 

Você divide o livro em tópicos, a infância e vida adulta. Como chegou a essa estrutura? Parece colocar o tempo, a passagem dos anos, como aspecto essencial. 
A estrutura nasceu do processo ininterrupto de ressignificação da memória. A cada minuto, a compreensão do já vivido se modifica, se amplia ou se estreita, se ilumina ou se ensombrece, como uma pedra girando entre os vidros de um caleidoscópio. Só se pode resgatar o passado com a experiência e a solidez do presente. Daí fazer uma história em quadros, embaralhando fatos e sentimentos, para que o leitor os organizasse - já que assim é nossa existência, a ordem e a coerência, se existem, somos nós que damos. 

Chama a atenção seu estilo: um texto que parece recorrer à poesia para falar sobre um cotidiano subjetivo. Seria talvez herança do conto, a necessidade de precisão e brevidade, através de metáforas?
Procurei um registro elegíaco, capaz de relevar a preciosidade do instante em tensionamento com a nossa finitude. Procurei investir mais em quadros de sentimentos do que na narrativa de relatos sucedidos em dois períodos da vida do personagem. Este tipo de linguagem não é mesmo dominante no romance canônico, no qual há um encadeamento de ações e seus autores se apegam, em geral, a um estilo mais documental e prosaico. 

O livro narra um delicado amadurecimento existencial. Em que medida questões biográficas entraram no livro?
Me senti impelido a narrar a infância de um homem numa pequena cidade do país, na década de 1970, ainda sob a influência da vida rural, mas com o avanço dos meios de comunicação, em especial a televisão. E, em contrapartida, desejava flagrar este mesmo personagem no tempo atual, vivendo numa metrópole, representante do homem contemporâneo, fragmentado. Como todo escritor, que aciona a memória para construir a sua obra, levei em conta minhas vivências de menino e de habitante de uma grande cidade. A gente só pode escrever sobre aquilo que nos pertence.  

Assim como seus livros anteriores, está em pauta o silêncio. Como percebe a capacidade de sugerir sentimentos através da escrita?
O silêncio é constitutivo do dizer. E o dizer está encharcado de silêncio. Me interessam as camadas de não-ditos entre o rio dos ditos. Porque elas também estão dizendo, de maneira subentendida. Também me interessa o que pode ser dito por meio de outras linguagens, que não as palavras. Cada um de nós é um texto em progresso, que se faz e se refaz, e não o lemos unicamente por meio das palavras que verbalizamos ou escrevemos. Fazemos a leitura de nós mesmos e dos outros pelos gestos, pelos movimentos, pelas expressões do corpo.

A diagramação parece complementar o texto: a posição na página, a cor. Você participou deste setor de criação?
Concebi a história buscando tratamentos distintos para as duas idades do personagem. Primeira pessoa e texto blocado para o período dos sete anos. Terceira pessoa e texto com espaçamento livre para o período dos quarenta. A ideia de usar a cor verde e sobrepor os quadros da infância na parte clara das páginas, e os da maturidade na parte escura, no entanto, foram da editoria de arte da Cosac Naify. Essa sugestão contribuiu para acentuar as diferenças entre as duas vozes narrativas, mas deixando entrever partem de uma mesma raiz. A forma acolheu com sensibilidade o conteúdo. 

GÊNEROS Carrascoza é reconhecido por narrativas curtas ("O volume do silêncio") e histórias do gênero infanto-juvenil ("Aquela água toda"). 

ESTILO Nos textos do autor, geralmente são narradas situações em que afetos e desconfortos são intensificados através do silêncio. 

"Aos 7 e aos 40", de João Anzanello Carrascoza 
Cosac Naify, 224 páginas, R$ 39,90

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