quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A narração como um mecanismo imprevisível

Hugo Viana


César Aira, uma criança de seis anos, é o narrador do livro "Como me tornei freira", do escritor argentino César Aira. Ele se apresenta como uma menina, uma doce garota que interpreta com sensibilidade aguçada a realidade a sua volta, mas é vista por todos os outros como um menino, um rapazinho que sofre, entre outras situações insólitas, com a prisão do pai, que num acesso de raiva matou um vendedor de sorvete, e a visita secreta de uma anã, na ala infantil de um hospital. 

Talvez a principal característica de Aira seja a imprevisibilidade, a maneira como eventos complexos, irônicos, bizarros e levemente adocicados pelo horror manejam o destino improvável do personagem César Aira. É uma narração que se destaca pela ambiguidade, pela maneira como fatos estranhos são relatados por uma criança - além da própria condição desse narrador, uma criança que muda de gênero de acordo com a situação, transforma a realidade como mecanismo de defesa e adaptação. 

O livro vem ainda com outro romance do autor: "A costureira e o vento", que também trata a narração como uma sombria e estranhamente debochada análise social. Logo no começo do texto Aira expõe os bastidores da criação, a voz reveladora do autor-narrador: "Desta vez, quero me permitir todas as liberdades, até as mais improváveis... Embora o mais improvável, devo admitir, seja que este projeto funcione", avisa o autor, no primeiro parágrafo, tornando evidente as estruturas do romance que geralmente permanecem nas entrelinhas.

O talento do autor argentino se confirma ao passar, sem alarde, desse ponto em que o narrador se abre para o leitor, como uma confissão, para algo mais raro e indefinido - a habilidade para, através da narrativa, criar enredos sucessivos, guiados por um instigante senso de imaginação. Para o autor, o livro parece surgir do contato entre escritor e página em branco; a narração como um ato em que a surpresa e a imprevisibilidade são as ferramentas à disposição. 

Nos dois livros é possível notar como certos atributos da lógica parecem encaminhar uma sequência de possibilidades infinitas. Fatos estranhos são acionados pela banalidade do cotidiano: tomar sorvete pode levar à prisão, ao lado obscuro da humanidade. Aira parece adaptar conceitos de vanguarda, do surrealismo e do dadaísmo, para então criar histórias de estilos próprios, aventuras que subvertem expectativas prévias, enredos em que a realidade - a vida política e cultural da Argentina - é uma misteriosa fonte de referência. 


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