segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Crítica amarga aos modos contemporâneos

Hugo Viana


Parte essencial da literatura é a construção de personagens, a criação de figuras que através de gestos e ideias podem ser interpretadas como perspectivas sobre a sociedade. Em seu novo livro, "Seu azul", Gustavo Piqueira trata o casal protagonista como fantoches para falar sobre certos hábitos da classe média brasileira, ironizando costumes guiados por crescente nível de superficialidade.

No enredo, Luiz Fernando e Giuliana são casados há 10 anos e parecem derrotados pela rotina; não conversam sobre nada significativo além das contas para pagar e não demonstram afeto por seu filho, Allyson, de sete anos. Depois de uma consulta, o psicólogo sugere um tipo de terapia: todas as noites, durante o jantar, devem conversar sobre notícias publicadas em grandes portais de notícia.

O livro, então, passa a ser composto apenas por diálogos motivados por reportagens acessadas em empresas de comunicação. Através de notícias como "O que você sabe sobre milionários?" e "Beyoncé compra tênis feitos com pele de animal", Gustavo parece interessado em sugerir um tipo de declínio cultural, criticar a inversão de valores dos dias de hoje e a maneira como o público parece aceitar essas modificações de forma passiva.

O autor debocha de características do mundo superficial, tratando com ironia seus personagens, que exibem níveis incríveis de preconceito, demonstram raciocínio torto, surpreendem pela maneira mesquinha avaliam amigos, família e vizinhos. Luiz Fernando e Giuliana parecem arrogantes com o pouco conhecimento que possuem, um casal verdadeiramente jeca, que acredita na virtude da ostentação, no benefício do luxo.

Gustavo parece consciente das deficiências éticas e morais de seus personagens, criando propositalmente adultos falhos como sintoma de uma sociedade em perigo, personagens que ilustram obsessões contemporâneas de natureza duvidosa. Mas a ironia, que inicialmente é uma espécie de espelho, parece se perder no desprezo contínuo; percebemos o lado mesquinho do brasileiro de classe média, mas nada além disso - uma reunião de cenas que não parece ir além da crítica superficial e humorada, uma sequência de situações que perde o fôlego pela repetição sem aprofundamento.

Não há narrador que direcione a narrativa. A ausência de uma voz dissonante torna a leitura especialmente confusa, por acompanharmos com insistência personagens que abrem a boca apenas para falar bobagens. Algo semelhante a um comentarista, dentro do livro, é Allyson, que durante o jantar desenha o diálogo dos pais, uma ilustração que demonstra, através de acessos de violência e egoísmo, que o futuro parece ainda mais sombrio.

O livro tem um projeto editorial cujo propósito é reforçar o sentimento do enredo através do tato. A capa e a contracapa vêm com areia colada porque, segundo o autor, revela a sensação desagradável que há no livro, um casal em crise. Bem, ele conseguiu, é uma sensação bastante desagradável, a areia cai no leitor, na estante. É preciso ler o livro com espanador do lado. É um tipo de design que leva em conta uma proposta conceitual e não o ato da leitura, embora exista o mérito de assumir riscos e pensar em possibilidades narrativas para além do texto.

Serviço

"Seu azul", de Gustavo Piqueira
Lote 42, 208 páginas
R$ 42,90

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