quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Muito além da imaginação

Hugo Viana

A literatura fantástica representa o impossível, a imaginação desenfreada que através do inusitado, fatos estranhos ou ocorrências perturbadoras oferece alegorias sobre o mundo real. Os amigos escritores argentinos Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo, numa noite de 1937, debateram suas ficções fantásticas favoritas; três anos depois, em 1940, foi lançada a "Antologia da literatura fantástica", que reúne contos, trechos de romances e peças de teatro de autores clássicos do gênero, escolhidos pelos colegas.

A obra compila textos de diferentes épocas, autores e nacionalidades, agrupando narrativas que ressaltam fases e possibilidades distintas do gênero fantástico. De escritores reconhecidos, como o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka e o argentino Julio Cortázar a pesquisadores, antropólogos e filósofos cujo trabalho parece arquivado pelo tempo, como o chinês Chuang Tzu, o escocês James Frazer, e o norte-americano Thomas Bailey Aldrich, Borges, Casares e Ocampo parecem destacar o alcance e a força do universo fantástico, as características que encantam leitores. 

"Não considero a literatura fantástica como um gênero, mas sim como um modo", opina a mestranda Iaranda Barbosa, que estuda a escritora Silvina Ocampo em sua dissertação. "Podemos dizer que há elementos que caracterizam algumas narrativas como sendo de corte fantástico. Em 'Introdução à Literatura Fantástica', Todorov nos deixou de herança elementos pertinentes como hesitação, questões metafísicas, mortos andando entre os vivos e metamorfoses", explica. 

"A modalidade literária fantástica tem surgimento num mundo pautado pela razão: dos romances góticos ao escritor alemão Hoffmann encontramos suas primeiras manifestações ambientadas em castelos temporalmente longínquos, associadas ao onírico, ao noturno, ao macabro", detalha José Ronaldo de Luna, que escreve mestrado sobre Bioy Casares. "A partir de Hoffman e dos contos de Edgar Allan Poe, temos um dispositivo de cotidianização das narrativas: o narrador nos apresenta um mundo cada vez mais familiar, precisamente para potencializar o efeito da intromissão de algum acontecimento inquietante", diz. 

As narrativas fantásticas que sobrevivem ao tempo, à passagem de gerações, parecem ser os textos que a partir de características que desafiam a lógica e o sistema racional apontam para a sociedade, para relações humanas; o fantasma como o apego ao passado, o vampiro representando o parasita afetivo, o avanço científico como uma espécie de busca existencial através da razão; o sobrenatural como forma de chegar a questões históricas e universais. 

"Quando se fala em literatura fantástica, fatalmente teremos que pensar em situações cotidianas: o fantástico é a possibilidade de introdução de uma anomalia dentro da realidade", opina Ronaldo. "A relação da literatura fantástica com o real se dá pela naturalização dos fenômenos sobrenaturais", aponta Iaranda. "O caráter verossímil das obras tira o leitor do senso comum. A 'Antologia de Literatura Fantástica', que foi de encontro ao realismo vigente e renovou o cânone da época, é uma ferramenta imprescindível para compreender tanto o que se entende sobre essas obras, como o entendimento de tais escritores sobre esse tipo de literatura", ressalta a pesquisadora. 

Essa antologia é um projeto importante que, além da qualidade dos textos, revela nomes importantes da literatura internacional que permaneciam pouco debatidos no mercado atual, como Silvina Ocampo. "Poetisa, contista e novelista, Ocampo surge na cena latinoamericana como uma escritora cruel, criadora de contos sinistros e que subverte ainda mais a ordem da realidade. A relevância de Ocampo pode ser entendida pela utilização de uma linguagem própria e renovadora, que confere a seus contos um humor refinado, sem ser patético, e as sensações de empatia, desespero e angústia, sem cair no sentimental", destaca Iaranda. 

Serviço

"Antologia da literatura fantástica", organizado por Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo
Cosac Naify, 448 páginas, R$ 69

Saiba mais

TRADUÇÃO - Esta publicação da Cosac Naify é uma tradução de Josely Vianna Baptista a partir das versões originais vertidas por Borges e Bioy Casares. Em 1982, quando foi lançada a versão italiana da Antologia, com traduções a partir dos textos originais, Borges criticou, avisando que os leitores saíram prejudicados. 

Textos

"Sozinha com sua alma", de Thomas Bailey Aldrich 
Uma mulher está sentada sozinha em sua casa. Sabe que não há mais ninguém no mundo: todos os outros seres estão mortos. Batem à porta.

"Definição de fantasma", de James Joyce 
O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

"O sonho da borboleta", de Chuang Tzu
Chuang Tzu sonhou que era uma borboleta. Ao despertar não sabia se era Tzu que havia sonhado ser uma borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu. 

"O lenço que se tece sozinho", de W.W. Skeat
A mitologia malaia fala de um lenço, sansistah kalah, que se tece sozinho e a cada ano ganha uma fileira de pérolas finas; e, quando esse lenço estiver terminado, será o fim do mundo. 

"Viver para sempre", de James Frazer 
Outro relato, compilado perto de Oldenburg, no Ducado de Holstein, trata de uma dama que comia e bebia alegremente e tinha tudo o que um coração pode almejar, e que desejou viver para sempre. Nos primeiros cem anos tudo correu bem, mas depois ela começou a encolher e a ficar enrugada, até que não conseguiu mais andar, nem ficar de pé, nem comer, nem beber. Mas também não conseguia morrer. No começo a alimentavam como se fosse uma menininha, mas acabou ficando tão diminuta que a puseram numa garrafa de vidro e a penduraram numa igreja. Ainda está lá, na igreja de St. Marien, em Lübeck. É do tamanho de uma ratazana, e uma vez por ano se move. 

Depoimento

"Creio que o tema fantástico, longe de ser um assunto alheio ao cotidiano, é o que mais revela sobre nós. Por exemplo: ninguém viajou no tempo, mas não há quem não tenha sonhado com a ideia. Ou escapar da morte. Não conheço nenhum bebedor de sangue, mas existem pessoas capazes de se alimentar das energias dos outros. Cada tema do fantástico corresponde a fantasias coletivas que atravessam anos; por isso eu creio que a literatura fantástica é muito mais realista que a literatura "realista", justamente por sua universalidade." 

Pablo de Santis, escritor argentino


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