quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O eterno impasse do cânone literário

Hugo Viana

Alguns livros permanecem relevantes anos ou décadas depois do lançamento; são obras que, de maneiras diferentes, sugerem ideias pertinentes para gerações seguintes, testemunhos sobre a natureza de dilemas sociais, argumentos que debatem a representação da realidade - pessoas ou lugares - através de enredos e personagens que incentivam uma forma especial de perceber o passado e o tempo atual. Podemos chamar de cânones Machado de Assis e Jorge Amado, por exemplo, pela maneira como ultrapassam barreiras do tempo: continuam vivos como autores importantes para entender costumes sociais e impasses morais ainda hoje simbólicos. 

"São tantas as definições de cânone, e, ao mesmo tempo, reina ideia de que se trata de tábua inflexível, tirânica", comenta Cristiano Ramos, crítico literário e professor. "Harold Bloom, por exemplo, além das qualidades estéticas, defende que 'toda originalidade literária forte se torna canônica'. Mas, hoje, ninguém ignora que algo pode ser considerado belo e original em dado momento, e banal ou mesmo vulgar noutro contexto. Certo é que um autor canônico não pode ser 'homem do seu tempo' - esse clichê que críticos e professores tanto gastam. Para que uma obra sobreviva, precisa justamente do contrário: transcender seu tempo, para que outras gerações possam lê-la, atualizá-la e também considerá-la excepcional", reflete. 

A gênese do conceito não está no processo natural de reavaliação constante de livros; é possível entender o início da ideia de cânone atrelado a pensadores originais que cunharam conceitos e foram seguidos por gerações posteriores. "Se observamos 'Poética', de Aristóteles, veremos que ali está estabelecido o primeiro cânone daquilo que chamaríamos de literatura ocidental", aponta Anco Márcio Tenório Vieira, professor do departamento de Letras da UFPE. "Aristóteles mostra quais são os livros que deveriam ser imitados, caso alguém decidisse escrever tragédias e epopeias. Obras que atendiam aos procedimentos formais que o modelo clássico defendia como necessários para levar a bom termo uma ação dramática ou épica e, principalmente, promover o processo de catarse", reflete. 

"Durante muito tempo o critério para canonizar uma obra era: quanto mais ela se aproximava do modelo clássico, ela era uma boa obra; quanto mais se afastava, era uma péssima obra. Claro que as coisas não eram tão pacíficas assim. Dois exemplos: o teatro de Shakespeare e o romance inaugural de Cervantes. O primeiro, desrespeita as regras clássicas, e inscreve em suas tragédias o riso e o cômico; o segundo, empareda tanto o modelo de narrativa legado do medievo - a novela de cavalaria - quanto o modelo narrativo da prosa épica", destaca o acadêmico. 

É fácil identificar, hoje, livros e escritores que permanecem relevantes. É difícil, ao contrário, perceber, no momento da publicação, quais as obras que podem eventualmente se tornar cânones. "Se há algo em comum entre obras canonizadas, é que elas tensionaram a linguagem até o máximo grau possível", sugere Anco. "Algumas entram no cânone pela radicalidade com que promoveram a ruptura da linguagem, criando um divisor de água entre o que se fazia antes e o que se sinaliza como os novos caminhos que a literatura deve percorrer. Não podemos deixar de citar tanto os autores que criaram um novo gênero literário, como Cervantes, quanto os que obrigaram a literatura a se reoxigenar, como James Joyce, Guimarães Rosa, Dante", lista o professor. 

Ao mesmo tempo em que há o cânone literário, o modelo de estilo e método que é seguido por novas gerações, existem autores esquecidos; não apenas escritores que lançam livros fadados ao descarte, peças que serão arquivadas nos fundos das livrarias, mas os criadores que embora tenham talento e vigor evidentes não conseguiram, por diferentes motivos, emplacar uma trajetória literária vasta. "Como fenômeno social, o texto literário lida com novas demandas, já que o mundo também está em transformação. Mas me parece que fatores midiáticos, editoriais e de recepção crítica continuam sendo fundamentais. Se não ocorre interesse dos meios de comunicação, ou das editoras, ou dos críticos e pesquisadores, continua sendo muito raro que qualquer autor se sobressaia", sugere Cristiano. 


Cristiano Ramos, jornalista professor e crítico literário

Qual o papel do crítico literário, do editor e dos cursos de letras no debate entre cânone e obras esquecidas?
Papel do crítico e do professor é transformar sua inquieta paixão pela literatura em sugestões, em caminhos possíveis para que o leitor faça sua própria jornada. Dos cursos de letras, oferecer ferramentas teóricas e práticas para esses mesmos profissionais. E do editor, ter sensibilidade para lidar com as demandas do meio literário e também do mercado. Problema é que entre críticos e professores tem faltado aquela paixão inquieta; nos cursos, vontade política e intelectual para enfrentar seus vícios, dilemas e desvalorização; e, quanto aos editores e donos de livraria, quantos verdadeiramente possuem essa sensibilidade que os impeça de vender literatura como se fosse sabão ou refrigerante?

Luz sobre 
obras esquecidas

Hugo Viana

O projeto Reserva Literária, concebido na Universidade de São Paulo (USP), tem como proposta renovar o olhar sobre livros e autores esquecidos, lançando novas edições de obras que causaram impacto na publicação original mas acabaram sem versões recentes. Os três primeiros lançamentos, até agora, são "Contos cariocas" (1928), de Artur Azevedo; "Marta" (1920), de Medeiros e Albuquerque; e "Mau-olhado" (1919), de Veiga Miranda. 

A ideia surgiu a partir da disciplina Introdução à Ecdótica, ministrada por José De Paula Ramos Jr., doutor em literatura brasileira e professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, que apresenta aos alunos fundamentos teóricos da crítica e da preparação do texto para a publicação. "Depois, esse conteúdo torna-se objeto da disciplina Laboratório de Produção Editorial, em que os alunos dão sequência às atividades necessárias à publicação, do design gráfico até a revisão, impressão e lançamento do livro", detalha De Paula. 

A escolha dos livros lançados é baseada em análises em diferentes setores do meio literário. "É uma atividade que compreende pesquisas em bibliotecas, sugestões de amigos, garimpagem em sebos, consultas à historiografia e à crítica literária, o conhecimento da reputação das editoras e, sobretudo, a leitura crítica de obras com potencial interesse para a coleção", diz o professor. 

Até agora foram editados três livros. "'Mau-olhado' era quase invisível na historiografia e na crítica literária. Quando li, tive a convicção de que era uma obra de excelência, pela perícia na construção da trama e das personagens. Medeiros e Albuquerque, célebre em seu tempo, é hoje conhecido por poucos. 'Marta' obteve três edições, a última em 1932. Por ser notável exemplo de nossa um tanto obscura prosa de ficção decadentista, e por ser obra pioneira no aproveitamento literário da psicanálise freudiana, tem méritos", destaca De Paula. 

O primeiro livro da Reserva Literária foi "Contos cariocas", de Artur Azevedo, lançado em 2011. "Artur ainda goza de certo prestígio, sobretudo como autor de comédias como 'A Capital Federal', mas está longe de ser a celebridade que fora em sua época, quando seu talento como poeta e cronista era reconhecido. 'Contos Cariocas' foi publicado uma única vez, em 1928. Essas narrativas breves ensejam uma divertida viagem ao imaginário brasileiro do fim do Império e início da República e ainda guardam muito de seu frescor", aponta. 

Relançar livros e autores chama a atenção para critérios de avaliação, os motivos que levam a uma espécie de esquecimento gradual de mestres do passado. "Os fatores podem ser sintetizados na noção de poética cultural", sugere De Paula. "Cada época tem a sua, composta pelos hábitos, crenças e valores vigentes. Esses fatores se circunscrevem na dinâmica de suas épocas, que prestigiam ou não as suas produções literárias conforme a maior ou menor afinidade da criação artística com o gosto hegemônico em cada período. Assim, o que era considerado de modo positivo, pode ser rechaçado por um momento posterior", ressalta o acadêmico. 

Saiba mais

FUTURO - O projeto Reserva Literária pretende lançar, no primeiro semestre de 2014, o romance "Navios Iluminados", de Ranulfo Prata. Para o segundo semestre, ou no primeiro de 2015, a coleção publicará o romance "O feiticeiro", de Xavier Marques. 

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