segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Fragmentos para montar o todo

Hugo Viana

Renato Parada/Divulgação

Os textos da escritora gaúcha Veronica Stigger surpreendem pela maneira como diferentes gêneros, formatos e sentimentos se misturam. Fatos estranhos acontecem sem explicação precisa, eventos do cotidiano são modificados por ocorrências excêntricas e abruptas; a realidade é retorcida por encontros perversos, personagens cedem à insanidade, certo mal-estar provoca o leitor e em seguida a normalidade é retomada, mas parece essencialmente modificada pela experiência.

Veronica lança seu primeiro romance depois de publicar quatro livros de contos. O título apresenta o interesse pelo inusitado: "Opisanie świata", que em polonês significa "Descrição do mundo". O livro parte de uma história de afetos - um filho, que está no hospital com uma doença grave, escreve para o pai que não conhece, um senhor polonês que passou uma temporada na Amazônia. Como último pedido, o filho convida o pai para visitá-lo, para buscar em seu rosto rastros de uma história familiar.

Para chegar a esse pequeno núcleo narrativo, Stigger experimenta uma criação fragmentada, reunindo textos em que a jornada do pai, Opalka, passa por zonas escuras, alternando entre comédia de equívocos e intimidade trágica. Assim como em suas narrativas curtas anteriores, a autora transforma o exagero e a brevidade em um tipo excêntrico de beleza; o absurdo e a união de fragmentos como forma de debater valores existenciais e crises sociais.

O livro é composto por diferentes modalidades de narração: relatos de viagem, cartas, diários, imagens (fotografias e publicidades), recortes de jornais dos anos 1930 - evocando, com essas escolhas, o autor paulista Valêncio Xavier (1933-2008), através da manipulação irônica de gêneros literários. A partir desses fragmentos, pedaços significativos de enredo, o leitor reconstrói a história - o mistério se revela a partir da união de partes distintas.

"Todo relato de viagem é
uma descrição do mundo"

Como foi a escolha do título e que tipo de impacto pretendia causar no leitor? Que alegorias nota em seu significado, "Descrição do mundo"?
"Opisanie świata" é o título de um conjunto de gravuras do artista Roman Opalka, que eu estava estudando lá por 2006, 2007. Foi pesquisando o que significa que descobri que era como se traduzia para o polonês "Il Milione", de Marco Polo. Achei que era o título perfeito para o livro que eu pretendia escrever, um livro cuja ação se dava no deslocamento do protagonista da Polônia até a Amazônia, portanto um livro de viagens. Quanto ao significado do título, se falar muito a respeito, acabo contando o final. Mas posso dizer que todo relato de viagem é, em certa medida, uma descrição do mundo.

Como planejou a estrutura do livro, composta por formatos diferentes - relato em terceira pessoa, carta, diário?
Desde o início, imaginei o "Opisanie świata" como um romance descontínuo, constituído através de várias formas narrativas, entremeadas de imagens, muitas delas provindas de anúncios de jornais e guias da época. Pensei essas imagens e alguns textos curtos que pontuam o livro como recordações que Opalka foi recolhendo ao longo da viagem. A narrativa em primeira pessoa seria como uma espécie de diário, de anotações que ele fosse fazendo no percurso - ou, talvez, depois de ter chegado a seu destino.

Este é seu primeiro romance. Recentemente outros autores que se destacaram através do conto lançaram primeiros romances. Como aconteceu essa transição para você?
Gosto de experimentar diferentes formas e gêneros literários. Nos meus livros anteriores, há textos que tomam forma de poemas, de legendas de fotos, de notícias, de palestras, de peças teatrais, de anúncios publicitários. Faltava experimentar o romance, o que foi um desafio. O conto é uma forma concentrada, com menos personagens e ações. O romance, ao contrário, flerta com o excesso, e eu fiz questão de trabalhar com vários personagens e, principalmente, com várias situações, o que, para mim, era inusual.

Em termos de mercado editorial, acredita que o romance é mais facilmente vendido do que o conto?
Sim, há essa crença, por parte do mercado editorial, de que o romance é mais facilmente comercializável. Por isso, dei a meu primeiro romance um título em polonês, que ninguém consegue pronunciar. Assim, ele não corre o risco de parar na lista dos mais vendidos.

É possível notar características recorrentes em seus textos: o interesse pelo detalhe, pela maneira abrupta como fatos inusitados irrompem na rotina. Como percebe essas características de sua escrita?
O interesse não é tanto na descrição detalhada da rotina quanto na descrição dos gestos dos personagens. Em vez de dizer "Fulano está constrangido", tenho preferido mostrar este constrangimento por meio da descrição pormenorizada de seus gestos. Alguns textos se resumem a isso. O conto "Caverna", de Os anões, de 2010, por exemplo, narra a movimentação de uma série de personagens dentro de uma sala pouco iluminada. Neste conto, o inusitado reside justamente na troca incessante de lugares, sem uma aparente razão para tal.

Em seus textos parece existir certa estranheza: a realidade é retorcida por absurdos. Neste livro a estranheza está já no título. Como percebe o excêntrico como recurso narrativo e estilístico?
Queria, com o título em polonês, justamente criar estranheza no leitor. Minha ideia era colocar o leitor, nem que fosse por um instante, na condição de estrangeiro, que é aquela não só do protagonista da história, como da grande maioria dos personagens. Com exceção de um e outro, todos estão deslocados de seu lugar de origem; estão em trânsito. A estranheza, em Opisanie świata, provém muito deste deslocamento, desta condição de estrangeiro.

Serviço
"Opisanie świata", de Veronica Stigger
Cosac Naify, 160 páginas, R$ 25


Saiba mais
Narrativas - A autora já lançou outros quatro livros, todos compostos por histórias curtas: "O Trágico e Outras Comédias" (2004), "Gran cabaret demenzial" (2007), "Os anões" (2010) e "Delírio de damasco" (2012).

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