Hugo Viana
Renato Parada/Divulgação
Os
textos da escritora gaúcha Veronica Stigger surpreendem pela maneira como
diferentes gêneros, formatos e sentimentos se misturam. Fatos estranhos
acontecem sem explicação precisa, eventos do cotidiano são modificados por
ocorrências excêntricas e abruptas; a realidade é retorcida por encontros
perversos, personagens cedem à insanidade, certo mal-estar provoca o leitor e
em seguida a normalidade é retomada, mas parece essencialmente modificada pela
experiência.
Veronica
lança seu primeiro romance depois de publicar quatro livros de contos. O título
apresenta o interesse pelo inusitado: "Opisanie świata", que em
polonês significa "Descrição do mundo". O livro parte de uma história
de afetos - um filho, que está no hospital com uma doença grave, escreve para o
pai que não conhece, um senhor polonês que passou uma temporada na Amazônia.
Como último pedido, o filho convida o pai para visitá-lo, para buscar em seu
rosto rastros de uma história familiar.
Para
chegar a esse pequeno núcleo narrativo, Stigger experimenta uma criação
fragmentada, reunindo textos em que a jornada do pai, Opalka, passa por zonas
escuras, alternando entre comédia de equívocos e intimidade trágica. Assim como
em suas narrativas curtas anteriores, a autora transforma o exagero e a
brevidade em um tipo excêntrico de beleza; o absurdo e a união de fragmentos
como forma de debater valores existenciais e crises sociais.
O
livro é composto por diferentes modalidades de narração: relatos de viagem,
cartas, diários, imagens (fotografias e publicidades), recortes de jornais dos
anos 1930 - evocando, com essas escolhas, o autor paulista Valêncio Xavier
(1933-2008), através da manipulação irônica de gêneros literários. A partir
desses fragmentos, pedaços significativos de enredo, o leitor reconstrói a
história - o mistério se revela a partir da união de partes distintas.
"Todo
relato de viagem é
uma
descrição do mundo"
Como foi a escolha do título e que tipo de impacto
pretendia causar no leitor? Que alegorias nota em seu significado,
"Descrição do mundo"?
"Opisanie
świata" é o título de um conjunto de gravuras do artista Roman Opalka, que
eu estava estudando lá por 2006, 2007. Foi pesquisando o que significa que
descobri que era como se traduzia para o polonês "Il Milione", de
Marco Polo. Achei que era o título perfeito para o livro que eu pretendia
escrever, um livro cuja ação se dava no deslocamento do protagonista da Polônia
até a Amazônia, portanto um livro de viagens. Quanto ao significado do título,
se falar muito a respeito, acabo contando o final. Mas posso dizer que todo
relato de viagem é, em certa medida, uma descrição do mundo.
Como planejou a estrutura do livro, composta por formatos
diferentes - relato em terceira pessoa, carta, diário?
Desde
o início, imaginei o "Opisanie świata" como um romance descontínuo,
constituído através de várias formas narrativas, entremeadas de imagens, muitas
delas provindas de anúncios de jornais e guias da época. Pensei essas imagens e
alguns textos curtos que pontuam o livro como recordações que Opalka foi
recolhendo ao longo da viagem. A narrativa em primeira pessoa seria como uma
espécie de diário, de anotações que ele fosse fazendo no percurso - ou, talvez,
depois de ter chegado a seu destino.
Este é seu primeiro romance. Recentemente outros autores
que se destacaram através do conto lançaram primeiros romances. Como aconteceu
essa transição para você?
Gosto
de experimentar diferentes formas e gêneros literários. Nos meus livros
anteriores, há textos que tomam forma de poemas, de legendas de fotos, de
notícias, de palestras, de peças teatrais, de anúncios publicitários. Faltava
experimentar o romance, o que foi um desafio. O conto é uma forma concentrada,
com menos personagens e ações. O romance, ao contrário, flerta com o excesso, e
eu fiz questão de trabalhar com vários personagens e, principalmente, com
várias situações, o que, para mim, era inusual.
Em termos de mercado editorial, acredita que o romance é
mais facilmente vendido do que o conto?
Sim,
há essa crença, por parte do mercado editorial, de que o romance é mais
facilmente comercializável. Por isso, dei a meu primeiro romance um título em
polonês, que ninguém consegue pronunciar. Assim, ele não corre o risco de parar
na lista dos mais vendidos.
É possível notar características recorrentes em seus
textos: o interesse pelo detalhe, pela maneira abrupta como fatos inusitados
irrompem na rotina. Como percebe essas características de sua escrita?
O
interesse não é tanto na descrição detalhada da rotina quanto na descrição dos
gestos dos personagens. Em vez de dizer "Fulano está constrangido",
tenho preferido mostrar este constrangimento por meio da descrição
pormenorizada de seus gestos. Alguns textos se resumem a isso. O conto
"Caverna", de Os anões, de 2010, por exemplo, narra a movimentação de
uma série de personagens dentro de uma sala pouco iluminada. Neste conto, o
inusitado reside justamente na troca incessante de lugares, sem uma aparente
razão para tal.
Em seus textos parece existir certa estranheza: a
realidade é retorcida por absurdos. Neste livro a estranheza está já no título.
Como percebe o excêntrico como recurso narrativo e estilístico?
Queria,
com o título em polonês, justamente criar estranheza no leitor. Minha ideia era
colocar o leitor, nem que fosse por um instante, na condição de estrangeiro,
que é aquela não só do protagonista da história, como da grande maioria dos
personagens. Com exceção de um e outro, todos estão deslocados de seu lugar de
origem; estão em trânsito. A estranheza, em Opisanie świata, provém muito deste
deslocamento, desta condição de estrangeiro.
Serviço
"Opisanie
świata", de Veronica Stigger
Cosac
Naify, 160 páginas, R$ 25
Saiba mais
Narrativas - A autora já lançou outros quatro livros, todos compostos por histórias curtas: "O Trágico e Outras Comédias" (2004), "Gran cabaret demenzial" (2007), "Os anões" (2010) e "Delírio de damasco" (2012).
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