quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Mergulho profundo em lembranças


Tema comum na literatura contemporânea, sendo manipulado por diferentes autores com resultados imprevisíveis, a memória é a matéria de trabalho do escritor argentino Fabián Casas, 48 anos, no livro "Os lemmings e outros". A partir de lembranças da adolescência, autênticas ou transformadas por mecanismos da ficção, Fabián compõe contos em que imagens da juventude, nos anos 1970 e 80, parecem carregadas de lirismo e humor. O livro integra o projeto Otra Língua, da editora Rocco, no qual o escritor Joca Reiners Terron promove uma revisão de autores da América Latina relevantes mas pouco conhecidos no Brasil. 

A memória como argumento de pesquisa, como motivação para a criação literária, é uma etapa essencial no processo de escrita de Fabián, que desenvolve enredos baseados em reminiscências de sua juventude em Boedo, bairro de Buenos Aires, sede do Club Atlético San Lorenzo. "Não tenho imaginação, então a memória ocupa um lugar importante na construção dos meus relatos", destaca Casas. "Mas não tenho uma memória de aço, e com o tempo comecei a perdê-la. Com isso minhas narrações começaram a enfraquecer, até ser uma pequena gota de água", sugere.    

Fabián se destacou, no fim dos anos 1980 e começo da década de 1990, com um projeto poético de vigor; sua produção o colocou, poucos anos depois, como um dos integrantes da "geração dos anos 1990", movimento literário argentino que refletia sobre o contexto político do período através de versos e alegorias. Os poemas de Fabián parecem equilibrar o pensamento estético e a convulsão política. "Era a época do neoliberalismo selvagem", lembra Casas. "Tratávamos de escrever em meio a isso. Agora o liberalismo se escondeu com a roupagem do progressismo. É a mesma luta", destaca. 

A experiência com poesias, a aptidão para o manejo de narrativas curtas em que as frases conseguem reunir, em poucas palavras, sentimentos complexos e metáforas sociais, parece fornecer à prosa de Fabián diferentes camadas de entendimento. Ao mesmo tempo em que apresenta, com objetividade, memórias pessoais e a intimidade de sua família, o autor sugere um ambiente lírico; a marca pessoal parece surgir em trechos que projetam o efeito do tempo e da memória através de uma sensibilidade aguçada. "Eu começo a escrever porque sinto uma musiquinha no meu ouvido", diz Fabián, "e dependendo da extensão da respiração dessa música, o texto se converte em verso ou prosa", ressalta. 

Embora as histórias tenham endereço fixo em Boedo, enredos sobre o cotidiano num pequeno bairro, os acontecimentos parecem, em alguma medida, representar emoções universais; ao observar de perto a construção de uma coletividade, é possível perceber conexões com o mundo externo. "Acho que falar sobre si mesmo é uma maneira de dar conta de uma experiência universal", sugere Fabián. "Sei que os leitores brasileiros sentem isso, porque me escrevem dizendo que passaram por essas mesmas coisas", revela. 

O escritor explica que trabalha, agora, em um livro que parece apontar uma mudança de estilo - ou talvez adaptações de suas marcas reconhecíveis para outras possibilidades narrativas. "A novela que estou escrevendo agora acontece em um território desértico, num futuro ou passado recôndito. Não há mais Boedo: creio que um escritor tem que trabalhar sempre contra sua habilidade", adianta. 

"Os lemmings e outros", de Fabián Casas
Rocco, 160 páginas, R$ 29,50 

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